CORAÇÃO EM PEDAÇOS
Eduardo Selga
 
 

_ Engenheiro! Todo o mundo, acorda! Eu estava lá na superfície, à caça de ratazanas e escorpiões para a festinha dos meus quarenta e três anos amanhã, e eles apareceram! Do nada! Assombração, esses putos! Devagar, sem barulho, os holofotes apagados. Tenho quase certeza de que me viram, mesmo à distância. Aqueles cães rastreadores! Porra! Será possível que nem mesmo aqui no subterrâneo a gente consegue alguma tranqüilidade, fugir desses animais da Limpeza Pública?!

Azulturquesa sempre foi exagerado no falar, muito gestual, aguaceiro em copo d'água. Mas naquela meio-tarde-meio-noite ele com certeza estava, esforço nítido, procurando transmitir a urgência com a maior fidelidade possível. Até porque, nunca foi homem afeito a brincadeiras de gosto duvidoso. Mentiras muito menos. Artista plástico inigualável até ser decretado Inútil pela Sociedade Mundial Oficializada, daí seu codinome entre nós os quatro que habitávamos em conjunto aquele buraco escavado na parede do metrô intermunicipal com assessoria arquitetônica de carcerários fugitivos da execução no Abatedouro, artista plástico, por vezes perdia o fio da meada duma narrativa, adicionando tintas particulares para colorir os relatos quase sempre cinzentos de sua existência. Mas era divertido. Considerávamos essa particularidade muito mais licença poética do que propensão a embustes. Seguramente aquele alarme era verídico. Precisávamos encontrar novo local seguro, portanto.

Corremos todos. Ou quase. É que os cambitos de Azulturquesa não obedeciam à sua vontade apaixonada de preservar a vida. Nunca entendi tamanho entusiasmo. Vidinha, porcaria infeliz, mas... E ele gritava tanto que eu sentia um rasgo no precário coração ainda no meu peito. E ele urina, fezes ralas, lágrimas grossas, enquanto o mundaréu de Autorizados corria em sua direção. Revólveres, punhais, outras armas permitidas. Poderiam, quisessem, videofonar à Polícia Social. Ele, oficialmente, seria recolhido ao Calabouço-Mor e então outra vez a quietude na metrópole. Embuste! Farsa do Estado! O destino mesmo, o Abatedouro Central. Mas perderiam eles o ensejo de conseguir proteínas gratuitas por quê? Carne magra, muita pele e pouca fibra. Proteínas vagabundas, entretanto se fossem aos Açougues Reconhecidos gastariam uma pequena dinheirama. Além do mais, a sombra da punição por homicídio inexistia: a morte de Inúteis como nós, os quatro, ainda que inaproveitados pelo Abatedouro, não significava prejuízo relevante à Sociedade.

Até por que eu conhecia minha culpa no assassinato, dificílimo esquecer a pintura do horror na expressão de Azulturquesa momentos antes de retalhado. Não! Por favor, não! Quero viver! Sacou dos bolsos pincel e tintas, ajoelhou o corpo mortiço entre súplicas ininterruptas, braços erguidos e rosto como quem implora auxílio à divindade. Para onde escorrera o sólido ateísmo dele? Com a velocidade habitual, principiou a traçar na plataforma de embarque sua última obra. Acanhada, quase conseguiu pintá-la por completo. Teria sido um Jesus Cristo, pelo rápido que percebi. O único em toda a carreira artística. Urrava dores inacreditáveis a cada vez que as lâminas dilaceravam seu corpo esquelético. Ouvi cinco ferimentos. Com certeza mais, entretanto. Além dos tiros. Eu já estava na metade da escada, passagem à superfície onde seria preso, quando emergiu força para interromper a fuga e mirar os olhos mais detalhadamente em meu amigo. Todo retalhado. Alguns mastigando ali mesmo suas partes, gargalhadas felizes. Hienas pós-contemporâneas. Outros ensacolando músculos, mãos, nádegas... E, procedimento tornado prosaico devido às minhas descobertas na Universal Foods Inc., no mínimo uma dúzia sorvendo de canudinho os sais minerais existentes no sangue do cadáver, artérias escancaradas. Até gostava dele, mas adiantaria bulhufas tentar defendê-lo contra aquela súcia. Minha morte antecipada em vinte e quatro horas, se tanto. Mas ao menos ímpeto chorar sincero eu deveria sentir. Nem isso!... Apenas lamentei. Protocolarmente. Como quem pêsames à avó do colega da madrasta. Quis dar início a uma reza sem fé, mas o metrô, silencioso. Portas abrindo. Um mar desembarcando, burburinho educado. Degustação interrompida, entraram. Sossego. Nada tivesse acontecido. O trem subterrâneo acelerou cheio. O vazio. Apenas um resíduo de corpo na plataforma.

O esquartejamento a poucos metros, cicatriz aberta de minhas atitudes equivocadas num passado vizinho. Cuja história esforçava-me ao máximo para ocultar deles, parceiros no infortúnio. Até por questão de sobrevivência: acaso soubessem, é certo seria espancado à morte. Muito provavelmente, concluo hoje que a morte está próxima, galope puro-sangue, ainda residem em mim escórias da velha ideologia que defendi, tanta veemência, quando indicado Senador da Assembléia Renovável dos Homens Bons, em função de minhas pesquisas à frente da Universal Foods Inc. Como fui tolo... Eu e minha certeza menina nunca seria ferido pela quinta emenda ao projeto federal, que autorizava o Estado a empobrecer cidadãos mediante o Decreto Categórico. A emenda, minha autoria, outorgava à Limpeza Pública a prerrogativa de capturar Inúteis para suprir a insuficiência no mercado consumidor de carne humana. Ainda me lembro dos cumprimentos cafajestes e tapinhas nas costas que recebi pela "idéia lapidar", que duma só vez solucionava dois cânceres sociais: nas ruas, o excesso de Inúteis; nas cozinhas, a escassez de matéria-prima para as refeições dos cidadãos.

Dependurado, cabeça para baixo, veias dos pulsos abertas, cotovelos unidos por corrente, pernas em quarenta e cinco graus. Sei, passo a passo, todos os becos tenebrosos pelos quais o restolho de vida que ainda me carrega caminhará antes da visita da morte inevitável. Conheço toda a cadeia produtiva. Nem poderia ser diferente, se eu mesmo quem, engenheiro de alimentos na Foods, dei o primeiro passo rumo ao abate dos Inúteis em escala industrial. Deveriam servir para alguma coisa, aqueles entulhos metidos a gente. Refeição para os Autorizados, por exemplo. É que por um desses auxílios do acaso, descobri: a carne humana é extremamente saudável ao corpo. Tanto mais se crua. Apesar de o sabor, quando sem condimentos, um tanto agridoce a paladares elegantes. O que não ocorre com o coração. A víscera, uma vez arrancada ainda pulsando para só depois sofrer todos os processos industriais, é iguaria muito mais saborosa do que qualquer outra. E restrita aos Autorizados Distintos. Aos quais um dia pertenci. Mastiguei muito coração alheio em recepções, posses, cerimônias, outros salamaleques sociais equivalentes. Deliciava-me, muito orgulhoso de mim. Embora soubesse a carne, e isso nunca revelado por motivos óbvios, acarreta, em algumas personalidades, profundos traços de morbidez e impulsos suicidas. Para efeitos estatísticos, o expressivo aumento nos índices de mortes voluntárias sempre foi creditado ao nível de competição a que está exposto o indivíduo na Sociedade, jamais à ingestão de músculos e vísceras humanas.

Goteja... e goteja... O sangue vazando dos pulsos feito fluxo menstrual. Encher, quase transbordar, vasilhames térmicos para posterior gaseificação com dióxido de carbono e venda no comércio especializado em refrigerantes. Minha consciência está querendo ir embora, visão dupla, a certeza forasteira daqui a pouco vou estar com Azulturquesa e ele me vai engolir, viva, a alma. Enxergo, imagens turvas, no início do corredor, passeando entre outras vítimas suspensas pelos ganchos, o proletário cujo dever é extrair meu coração ainda latejante. Traz a motosserra que me vai navalhar o peito. A dor, sem precedentes nem anestesias, fará de mim por alguns minutos corpo desfalecido assim que as mãos dele assaltarem-me o tórax aberto e, truculência e talvez cinismo nos lábios, puxar o músculo que palpita. Para só após remover a epiderme. Desossar. Lá vem ele. Não é funcionário bem remunerado da Limpeza Pública (migalha que o Abatedouro paga), entretanto exibe no rosto a mesma crueldade gratuita, a mesma alegria em ser mais um dos tantos verdugos responsáveis pelo sofrimento alheio. O último da cadeia produtiva. Agora ele a menos de dez metros. Meu coração será arrancado, feito em pedaços, em conserva, valor exorbitante. Mas, se pesos e medidas corretos, ele não deveria custar vintém: moído. Porque o peso dos remorsos esmaga. Um metro o operário, se muito. Fecho os olhos lentamente. As energias escoaram-se todas, sobrou apenas a constatação de que a morte me vai adotar o corpo. Mas ainda consigo rir sem prazer, apenas autopiedade. É a lembrança boa, o desejo abraçar Azulturquesa pela última vez... Quem sabe, explicando meus motivos injustificáveis, a absolvição?

_ Sabe o que é o pior, meu caro Inútil? A motosserra está meio banguela, muitos dentes cegos. Vai doer bem mais do que o normal. Coisa triste, né?

 

 
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