AQUILO NAQUILO OUTRO
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Eduardo Sales
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"Eu quero até seu sangue quando te vencer. Sabe por quê? Porque o seu sangue me alimenta! Dá-me sustância!" Ouvi isso num daqueles filmes de faroeste. Desde a infância as pessoas queriam o meu sangue, mas eu não sabia. Só faltavam torcer meu braço e pescoço para que, por meio desse nobre ato, semelhante ao entorse de uma camisa molhada, dispersassem todo desejo de viver que aquele líquido me proporcionava. Constatado isso, na adolescência, observava a vermelhidão do oceano provocando a minha afável insistente visão do mundo que acreditava na pureza de todas as pessoas. Foi num filme sobre a vida de Moisés que a água avermelhou, e que vi um deus enfurecido. Muito, muito sangue. Muita cor vermelha. Sim, meu maior desejo, aos 15 ou 16 anos era me tornar médico. E chupar pescoços de loiras e morenas. O sangue inebriou-me novamente com aquele vermelho mal-educado que surgiu após a queda de bicicleta. Aos vinte e poucos anos havia acreditado no vermelho também como um símbolo. "Sou um socialista convicto, quero o sangue dos capitalistas e desejo lavar o rubro do rubor de suas faces gordas e suadas. Eis me aqui, com a foice e a enxada na mão, pronto para acertar a tua cara, seu porco imundo! O mundo é vermelho!" Aos quarenta e cinco, descobri a beleza de ser pai de gêmeos, e o vermelho de suas assaduras apaixonaram-me. Divertia-me fazer cócegas em seus bumbuns. Com sessenta e sete, havia um sangue expelido junto da urina, mas não era tão vivo. Porém, ainda me alegrava. Velho e acabado, com dois filhos que só sabiam gastar o meu suado dinheiro, eu não cria que o sofrimento era maior que a beleza do meu sangue, mesmo misturado a urina. Aos oitenta, morri. Mas antes, houve todas aquelas agulhas, cama ensangüentada, gorfadas no travesseiro... E isso foi o que me alentou. Ter a beleza daquele vermelho que somente o sangue possui, ali, ao meu lado, era bom demais. Após uma vida toda admirando uma cor que só o sangue possui, percebi que o essencial, no meu caso, não era a cor, e sim os meus olhos que transformavam aquela naquela cor. Seria eu um vampiro ou um idiota metido a empirista? |