NOSFU-NOSFERATUS
|
Chico
Franco
|
Era assim todo santo dia : - Vira essa jugular p'ra lá ... Nosfu sempre dormia enfastiado, pois apesar da fome original, não tinha mais pique, e queria mesmo era dormir. Quem diria, o grande Nosfu, apelido carinhoso que o terrível Nosferatus ganhou, numa noitada na casa da caça do rei Nabuco Constantino Perrota, agora estava ali, acabado e com sono, na frente de uma jugular. E pensar que a poucos séculos atrás, o bicho não podia ver um rabo-de-saia e um pescoçinho, que já arrebentava com tudo para conseguir a presa. Ouviram dizer até, que ele roía, com os próprios dentes, qualquer porta que se interpusesse entre ele e o almejado jantar, só para reforçar o tempero. Numa noite destas, alguém saiu correndo do prédio onde ele mora atualmente gritando : - Demônios, demônios ! me ajudem pelo amor de Deus. Era o Nosfu ? Não, eram ladrões mesmo. Nosfu estava no quarto : - Mery Jane, amor, me faz um suquinho de maracujá. - Agora não posso, tô secando as unhas. Acabei de passar esmalte; olha que lindo que ficou ! - Mas a festa é só a semana que vem, amor, não precisa ficar se empetecando uma hora destas. Me arruma um suquinho, vai ! Depois tem recompeensaaaa ... E a noite continuava madrugada adentro, com o Nosfu matando a sede no maracujá, e a Mery Jane manhosa no canto da cama, ouvindo meio desconsolada, aquele som tristonho do chupar do canudinho na espuminha do final do copo, e esperando a prometida recompensa. Mas, não foi por acaso que ele chegou a este ponto. Dizem que lá pelos idos do século XV ou XVI , Nosfu resolveu tirar uma férias da Europa, e partiu, clandestinamente, para uma viagem rumo ao desconhecido. Foi de navio. Queria ir para bem longe dizendo : - Estou cansado de sangue doce e branquelo; quero algo mais quente, diferente, ardente, que faça vibrar meu dente. E aquilo era a pura verdade. Nosfu tinha perdido uma das presas já a algum tempo, quando depois de um porre franciscano, deu uma dentada no pescoço de uma estátua de granito, bem em frente ao palácio de South Birmingham Blubs na Baixa Escócia. Foi um vexame, comentaram na época. Mas para ele, aquilo era motivo de desdém e chacota, pois mesmo com um só canino, o velho vampiro ainda fazia tremer toda a Europa. E lá se foi a caravela. Depois de alguns dias sacolejando em mar revolto, Nosfu sentiu vontade de deixar o esconderijo, esticar o corpo e apreciar a lua cheia, que clareava todo o convés da nau e se esgueirava por todas as frestas do madeirame. Pé-ante-pé, Nosfu saiu do fundo malcheiroso do porão, e quando estava prestes a chegar no solitário convés por traz da escotilha principal, ouviu em tom cortante : - Óh Cabral, pilharam o bacalhau ! vamos ter que pescar de novo. - Raios mâ partam ! Melhor acabar com esta tripulação, senão passamos todo nosso tempo pedindo emprestado a vara de pescar do jesuíta. - Não mais, bradou solene Nosferatus, arremetendo-se com fúria para o convés. E com a túnica lilás toda ensangüentada continuou : - O jesuíta já era...e eu ainda tenho fome ... Sem perder a compostura, o nobre empenachado, que por alguma razão parecia já familiarizado com aquela situação, permaneceu frio e perguntou de pronto : - Óh careca, você acabou com os dois ? - Dois quem ? perguntou, sem jeito, a fera. - Os jesuítas , raios ! - Não, só um, ... o outro tinha correntinha ... benta ..., mas como é que você sabe que eu sou careca ?, fuzilou Nosfu. - É que a sua peruca enroscou ali no gancho do tombadilho, apontou Cabral, e continuou, depois de levantar a sobrancelha e amaciar o bigodão : - Veja lá, óh careca, se nos comes, a mim e ao piloto, vais ficar à deriva pelo resto dos teus dias. Ninguém mais sabe manobrar este possante.Te proponho, então, o seguinte : Tu ficas na moita, digo, no porão, escondido até lá pelas horas do segundo quadrante. Todos os dias, nesta mesma hora, peço a um gajo tripulante para ir buscar alguma tralha lá em baixo, e aí, você craws... entendeste ? Aquilo soava estranho a Nosfu, a oferta, o linguajar, a frieza do português. Mas ele sentia que não tinha muita alternativa a não ser aceitar o trato. Afinal, o empenachado parecia, além de muito decidido, bem intencionado. - Está certo, eu aceito, concordou Nosfu meneando a cabeça. - Mas, e o que é que eu faço depois, no resto das madrugadas ? questionou a fera. Cabral novamente consultando o bigode, deu a dica : - Podes passar a noite jogando tranca com o piloto no convés, que tal ? ... e se der na telha, temos a bordo um Porto de safra muito boa para noites de jogatina. - Feito. Eu topo. Só tenho uma dúvida. disse Nosfu. E encarando Cabral nos olhos perguntou : - Como é que você consegue ser tão frio e determinado deste jeito, e além de tudo, não ter medo de mim ? Eu nunca vi isto... Cabral, alisando o bigode, olhou para o negrume do mar, suspirou fundo, e disse : - Meu amigo, eu te conheço de outros carnavais. Meu padrasto foi caçador de vampiros e sei muito mais do que você pensa. Olha a correntinha aqui ó, mostrou Cabral abrindo o colete de couro, e balançando uma medalhinha da virgem dos navegantes. E continuou : - Cá estou porque tenho uma missão impossível. Tenho que descobrir um tal de Brasil, e lá fincar nossa bandeira portuguesa, antes que os espanhóis, os holandeses, e os franceses o façam. E mais, tenho que procurar e arrancar daquele solo, todas as bandeiras dos cartagineses, dos vikings, dos chineses, dos fenícios, e de quem mais lá aportou sem autorização da nossa real majestade. - Difícil. heim ? anuiu Nosfu, com um bocejo. - Vejo que perdeste a fome, confirmou Cabral cutucando a barriga de Nosfu. - Vamos então a um joguinho. Que tal ? ... Ó piloto, traga lá o tabuleiro e os banquinhos ... E assim passaram os dias e semanas, até que a tripulação não existisse mais, só restando a bordo o capitão Cabral, o piloto, um jesuíta, um escriba que se escondeu por um bom período no quarto do jesuíta, e ele, Nosferatus. Após todo aquele tempo, a amizade entre eles floresceu e era tanta, que pela ordem, agora tínhamos a bordo o Barba, o Niki Laura, o Barrica, o Vazinho, e ele, Nosfu, que de tanto amanhecer no convés, acabou se acostumando ao sol sem ser queimado vivo, nem virar pózinho. O Barrica jurava que era por causa das virtudes divinas do vinho da terra dele. E o melhor para todos, é que Nosfu acabou, por pura necessidade, se acostumando a comer bacalhau com vinho todos os dias, antes é claro, da tradicional partidinha de baralho. Só deu azar quando uma noite já meio alto, quis fazer bonito para os amigos, e dizendo-se exímio nadador, mergulhou no negro mar para pescar bacalhau no tapa, como ele mesmo anunciou berrando na prancha de mergulho. Não era a prancha de mergulho, era a prancha de vistoria de proa, e Nosfu, num salto espetacular, meteu a cara na âncora de bombordo. Depois do corre-corre, que judiação, a tristeza invadiu o convés. Nosfu havia perdido seu único canino bom. - Fazer o que ? choramingava ele, - minha mãe bem que dizia, que o meu destino era outro; agora entendo porque. E assim foi. Ao final, encontraram o tal Brasil, Cabral espetou lá suas bandeirolas, arrancou outras, tudo conforme o combinado com o rei. Só fez um pouco de confusão na documentação oficial, quando pediu para o Vazinho mencionar a Pratada de Tortilhas ao invés do Tratado de Tordesilhas. Tudo bem, isso acontece, e a História parece que já corrigiu o engano. Aprenderam muita coisa com os índios. Inclusive, foi naquela época, que a fera se apaixonou por uma fruta, daí o nome em inglês do maracujá, "passion fruit", e Nosfu não ficava um dia sequer sem traçar uma frutinha. Aprendeu também, a colecionar pedrinhas de diamantes, esmeraldas e pó de ouro, para trocar por espelhinhos. É claro que a fera só fazia a primeira parte. Passados lá cinco séculos, encontramos Nosfu batendo papo com a rapaziada do posto de gasolina, rindo à beça e com uma bela prótese na boca que nem dava para notar. Emprego registrado e tudo. Jaleco branco, todo orgulhoso, era assistente de atendente do terceiro turno do IML local. Uma glória. Dizem as más línguas, que ele até tirava umas casquinhas com a mulher do plantonista do segundo turno, mas isso é pura fofoca. Depois daquele dia do escorregão na frente da padaria do Bigode, ele só quis mesmo é ficar em casa. Naquele dia, Nosfu sem perceber, pisou em falso num caroço de azeitona, perdeu o equilíbrio foi de boca para o chão. O homem era grande e foi um estrondo só. Todo mundo assustou. No meio da pasmaceira, uma mão pousou no ombro de Nosfu. Algum pobleminha, seu moço ? Nosfu levantou sofregamente os olhos e ficou boquiaberto ... estupefato. Ali estava ela, Mery Jane. Uma mulata roliça e cheirosa, um monumento de 1,83 m de altura, cinturinha fina e 128 kg de amor para dar. Mas o que deixou Nosfu de quatro foi o tamanquinho azul piscina que aqueles pezinhos bem tratados calçavam. Que espetáculo ! De um salto, Nosfu se pôs de pé, e estabanado batendo a poeira se apresentou : - Norberto Crisântemos Cabral, a seu dispor. A moça delicada, esboçando um sorrizinho brejeiro, meio sem jeito, devolveu : - Posso te chamar de Nonô ? |