RUBELITA
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Beto
Muniz
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Eu era menino ainda, pré-adolescente descobrindo prazeres rurais quando fiquei afeiçoado a Rubelita. Foi uma afeição de duração breve, o tempo de uma entressafra, começou por causa de uma longa estiagem e terminou com as primeiras chuvas. Arredia no início, ela fugia ao menor sinal de que eu ia botar as mãos em suas tetas. Quando não tinha jeito de fugir, mordia. Depois amansou e qualquer um podia ordenhá-la. Fora uma mancha branca no olho esquerdo, era todinha castanho avermelhado e foi daí que veio o nome Rubelita, um tipo de turmalina que pensa que é rubi. Era a década de setenta, as chuvas que deveriam cair logo depois do plantio não vieram e comprometeu toda a safra do ano. Foi um castigo duro para o triângulo mineiro, região que meu avô escolheu para plantar a família e algumas sementes, que não resistiram à falta de águas. Por conta desse prejuízo inesperado, durante meses nossa família sobreviveu na base de mandioca cozida e leite de cabra. Dois anos e meio antes meu pai tinha adquirido duas cabritas e um bode. Bitona ganhou esse nome porque estava prenhe, enorme. A outra fêmea nem teve tempo de pegar nome na família, morreu pouco tempo depois de chegar no sítio, sufocada com um pedaço de saco plástico esquecido no terreiro. Sua cria já estava desmamando e não sofreu tanto. Arredia, a cabritinha vivia fugindo para outros pastos e por isso levou o nome de Campeira. Bitona pariu dias depois e tio Chico, que tinha garimpado quando moço, deu o nome para a caçula das cabras. Rubelita cresceu e pegou cria junto com a Campeira. Ambas pariram bem antes da longa estiagem. No início do flagelo os filhotes já estavam desmamados e foram vendidos junto com o bode. Pouco dinheiro diante dos prejuízos causados pela seca. A estiagem se estendeu além da conta, como não tinha arrozal para capinar, nem nada para fazer, no decorrer dos dias eu, meus irmãos e primos tinhamos por tarefa levar as cabritas para pastarem na beira do Ribeirão Tronqueira. Ali o capim verde teimava em resistir aos dias esticados de sol. A molecada nadava enquanto os animais extinguiam touceiras de capim, depois, antes de subir a ladeira, cada qual escolhia uma anca caprina - fora Bitona que estava de cria nova, e se dedicava a arte dos prazeres rurais. Por conta dessa arte eu me afeiçoei a Rubelita. Foi nessa mesma ocasião que uns morcegos resolveram, literalmente, comer nossas cabritas! Esse privilégio era exclusividade, lógico, dos moleques fraternos. Diante da primeira evidência de que os vampiros do cerrado estavam atacando, alertamos papai, que nada sabia do nosso envolvimento extra-ordenha com as cabras leiteiras. Ele mais que depressa tratou de preservar nosso leite de cada dia declarando guerra aos chupacabras. Meu avô cortou várias tabocas com aproximadamente cinco metros de comprimento, deu uma para cada moleque da família, chamou papai e tio Chico também, e na boca da noite posicionou cada qual num ponto do terreiro. Ficamos parados, agitando violentamente os paus de taquara. As vibrações produzidas na extremidade superior confundiam e atraíam os morcegos. Quando os danados percebiam o engano, PIMBA! Já era tarde. Pego de surpresa em pleno vôo, o atrevido levava uma lambada nas fuças ou numa das asas e caia direto na boca dos cachorros. Na primeira noite vingamos bem o sangue de nossas cabritas, abatendo meia dúzia de vampiros incautos. Na manhã seguinte cobramos o pagamento ordenhando as defendidas. À tarde buscamos novo pagamento, sem ordenha. Meninos em fila! Para evitar brigas, os maiores primeiro. Noite após noite fomos, eu e meus primos, para o terreiro abater nossos concorrentes alados. No breu da noite a gente não chegava a ver os demônios, apenas ficávamos ali, vibrando as taquaras até sentir o golpe fatal correr pela madeira oca e vir parar na mão que agitava a arma. Os cachorros saiam em disparada e o mais esperto deles voltava com o vampiro nos dentes. Cada queda uma comemoração de vitória! Durante um bom tempo nossa diversão era derrubar os rivais à noite e cobrar o pagamento das cabritas à tarde. Até que choveu. Com a chegada das primeiras chuvas, nossas tarefas foram transferidas para o eito e as tardes de prazeres rurais foram trocadas pelo cultivo do milho, abóbora, melancia e feijão. Nunca mais levei Rubelita para pastar na margem do ribeirão. Quando o trabalho bruto na roça exigia, os moleques deixavam de ser crianças e eram tratados como se fossem homens. Os serviços de terreiro, horta e ordenha passavam a ser tarefas das mulheres da casa. Os morcegos, raros então, também deixaram as cabras em paz. Voltaram a se alimentar de insetos e foram esquecidos. |