JANELAS ESQUECIDAS
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Thaty Marcondes
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Ela amanhecia meio deslocada, olhar anuviado, mente desconectada da realidade. Os olhos, principal janela da alma, mostravam que a moradora daquele corpo estava ausente. Talvez estivesse a passeio em alguma lembrança de um passado distante; ou apenas tinha dado uma rápida saidinha pra comprar pão ou café; quem sabe uma viagem à Estação de Águas; na maternidade experimentando o delírio de ser mãe novamente pela primeira vez? Impossível saber, inútil tentar adivinhar. Só quando se acendiam as duas lamparinas de suas íris - ainda que à base de querosene vencido - , alguma luz, mesmo que fraca, brilhava dando indícios de que voltara ao momento presente. Ele tentava acompanhar, adivinhar, naquelas frases perdidas, relatos descompassados de um tempo ido. Num esforço de memória tentava agarrar sua mão e acompanhá-la, mesmo que apenas por alguns míseros instantes, em sua viagem atemporal. Continuava sendo o companheiro fiel, mesmo em seus devaneios, em seus redemoinhos de saudades. Tempos nessa agonia, pela primeira vez em meses, um dia ela acorda e desperta, contando suas aventuras da noite anterior: - Essa noite ele esteve aqui. -
Quem? -
Meu namorado. Aliás, acho até que ele mora aqui, sabe?
É isso que eu não entendo! -
O que você não entende? -
Como é que meu namorado pode dormir na minha casa? Meus pais
jamais permitiriam isso! Estou tão confusa! -
E você gosta de seu namorado? -
Sim, sim. Gosto muito. Penso até em me casar com ele no futuro.
Ter filhos, uma casa bem parecida com esta aqui. Aliás, de quem
é esta casa? Quem mora aqui? -
Você não se lembra? -
Não. Não me lembro, não. Mas gosto de tudo que
tem aqui. De muito bom gosto, essa decoração, embora pareça
uma casa de velhos, assim cheia de fotos de crianças, móveis
bonitos, caros... Eu gostaria de uma casa com almofadões pelo
chão, um tapete peludo de pele de carneiro, talvez até
um sofá de couro, um lustre de missangas azul turquesa, detalhes
em laranja, enfim: coisas mais modernas, bicho, entendeu? Ele
abaixa a cabeça, dá um longo suspiro. Ela
o pega pelas mãos e saem andar pela sala. Lentamente, através
das fotos, começa a se lembrar de tudo, ainda que de forma um
tanto confusa. - Eu me lembro dessa barriga; me lembro deste bebê: Gustavo. Gustavo Filho, meu primogênito. Nasceu com quase 4 quilos. Veja: grávida de novo... Sim, a gravidez de Isaura: que bebê lindo ela era! Aniversários de criança. Como era gostoso fazer essas festas: família reunida, encher balões, fazer brigadeiro, contratar palhaços e mágicos, a casa cheia de risos. Pára diante de outra foto e quase desmaia. Ele a ampara. Ela desvia o olhar da imagem e caminha até outro local com mais fotos. Recomeça a recordar outra parte de sua vida. - Meu casamento. Veja: é você! Você é o Gustavo, meu Gustavo, meu namorado, meu marido, o pai de meus filhos. Meu companheiro até durante minha ausência. - Isabel, que bom que você agora se lembra de tudo. - Não, meu querido, de tudo não. Lembro das crianças se formando, casando, sei que temos até 2 lindos netos! Ela então volta ao lote das primeiras fotos e pega entre as mãos o porta-retratos com a foto não comentada anteriormente. - Terceira gravidez. Meu pequeno Gabriel. Prematuro, franzino, mas conseguimos, até que ... Ela olha dentro de seus olhos, com desespero, com lágrimas pelo rosto, e pergunta: - Onde está Gabriel? Não tenho lembranças de sua formatura na faculdade, nem de seu casamento. Pelo amor de Deus, me diga que não é verdade o que estou pensando! Ainda ouço o telefone tocar e a enfermeira me pedindo pra que eu corra ao hospital. Ele ainda está lá? - Não, meu amor, nosso pequeno Gabriel se foi, já faz tempo. - Quanto tempo? Há quanto tempo eu estou nesse esquecimento? - 6 anos, Isabel. 6 anos sem nosso querido Gabriel. - Gabriel... É nome de anjo! - Sim, meu bem, é nome de anjo. De repente as nuvens voltam e embaçam os lindos olhos azuis de Isabel. - Desculpe, moço, não o conheço pra que tome essa liberdade de me acompanhar em trajes íntimos. Se meus pais o descobrirem aqui, você vai ver só! Que atrevimento! - Isabel... - Sim? - Já se esqueceu de mim? - Veja lá se vou dar bola ou papo pra um coroa como você. Se meu namorado encontrá-lo aqui, vai acabar com você. - Mas...Isabel... - Veja: um anjo...Está vendo? Ali no canto da sala, próximo à cortina? Não vê? Não me diga que também não escutou ele me chamando? - Não, Isabel. Não vejo anjo algum, tão pouco posso ouvi-lo. - Ele é tão lindo! Ele disse que se chama Gabriel, e está me chamando. Adeus, estranho. E Isabel mergulha para sempre nas brumas do esquecimento. |