Q...?
(aconselhável chamá-la de Keith)
Beto Muniz
 
 

Keith me debocha - com um sorriso pela metade, e diz que é desperdícios de tempo, toques de pontas de dedos e neurônios sadios, eu me sentar diante do micro e trabalhar uma idéia até ela tomar forma de poesia, ou texto interessante aos olhos de leitores hipócritas - segundo ela, elogiando sonetos singelos quando estão ávidos por sexo e luxúria. "Escreva contos eróticos" - ela provoca, "Pornografia seria melhor, se você tivesse competência para tal". Eu me calo e recebo o tapa no orgulho: "Conte sobre nossas tardes. Descreva minha fome. Erotismo se vende e paga motel, poesia não". Keith sabe que sou tímido e fala essas coisas tentando me envergonhar com a carga de romantismo presente nos meus textos.

Sustento seu olhar até que a risada de hiena esgote. Keith é toda uma fauna. Cessa a crueldade e se transforma, vem insinuante, meio serpente, meio gata manhosa, me beija na boca. Sabe bem como escoar minha raiva fazendo brotar novas vontades que jamais serão escritas. No meio do beijo ela vira um polvo, me envolve com pernas e abraços. Por alguns instantes eu não sei quem ela é, qual animal faminto representa, muito menos qual é seu sentimento por mim. Quem saberá o que realmente pensa das minhas investidas nos versos? Se na globalização em que vive, sobra espaço para gostar um tantinho só dos meus poemas singelos, das rimas de pé quebrado. Keith pode, impunemente, detestar tudo que escrevo e só acompanha meus acometimentos literários, na esperança de que eu cometa equívocos, pequenos erros, que serão transformados em objetos pontiagudos e arremessadas contra mim na próxima tarde. Algumas horas de impertinências, provocações e erotismos. Talvez não, pode ser que no último poema eu tenha conseguido tocá-la, esperança tola que se torna expectativa, depois ansiedade. Estou aguardando sei lá o quê! Algum vestígio de aprovação. Sim, sou uma triste figura, carente de Keith com suas várias alternativas. Preciso me livrar dessa cadela, fazê-la não mais me querer, porque eu sou o fraco, sempre cedendo quando ela me procura. Gosto do seu corpo, invejo sua inteligência, mas acima de tudo admiro sua falta de pudor. Não tem bom senso, percebe-se pelas palavras crueis, porém compensa essa falha com sua incrível sanidade. Eu sou insano, uma criatura de Deus postada diante do teclado para escrever que agrediu pessoas na rua. Não contei que gritei com um sujeito que nunca tinha visto mais imbecil?

Gritei e ele retrucou - lógico, ninguém fica impassível ao grito despropositado de um estranho. Mas eu tinha que expressar minha indignação contra o sujeito jogando a latinha de cerveja na grama do parque. Porco foi pouco!

Keith não sabe ainda. Ela não leu a última publicação e por isso não comenta. Apenas repete, com o sorriso pela metade, que meus dedos seriam mais bem aproveitados em outros toques... e abre distância entre seus joelhos, insinuando escritas que jamais escreverei, apesar de aproveitar bem os dedos. Ela então não debocha mais, apenas geme e pede que eu desista das poesias e escreva contos eróticos. Goza implorando que eu escreva sobre ela, sobre nós. Sobre nossas tardes. Eu nego, digo que não vou me prestar a esse papel e ela continua, meio serpente, meio gata, meio polvo e toda perua debochada: "escreve sobre nós? Nossas tardes?". Eu insisto que não e Keith ofende meus brios: "Poesia não paga motel". Joga na cara quem é que tem o dinheiro, o poder, a razão. Diz também nas entrelinhas que sou um mero objeto de prazer. Não deixo ela perceber que eu gosto de ser homem objeto! É onde está a graça de nossas tardes! Só me incomoda levar na cara que sou um duro, que não tenho nem para rachar a conta. "Ainda me vingo" - penso já encontrando a solução. Volto para casa no começo da noite, debruço diante do teclado e escrevo sobre deboches, sobre tardes eróticas, revelo meus pecados e também o segredo de Keith. No seu mundinho fashion ela esconde com a vida qual é seu nome. Não tem nada de mais, nem de menos, mas sabe-se lá o motivo, basta chamá-la pelo nome de batismo para ela esquecer o deboche, esquecer quem paga, esquecer o gozo, juntar os joelhos e ir se embora, pisando duro!

Vai Quitéria. Debocha agora. Debocha!

 
 
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