QUEM É VOCÊ?
Bárbara Helena
 
 

"Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono..."
- Guimarães Rosa -

Eu tinha três anos e dois meses quando me apaixonei pelo Carluccio.

Ele era noivo e 22 anos mais velho. Me pegava no colo e dizia que ia casar comigo. As amendoeiras ficaram amareladas, eu brincava de casinha com as folhas e olhava o céu deitada na terra. Odiava sua noiva, Iolanda, lembro até hoje do nome.

Muitas vezes entreguei a ele pedrinhas brilhantes e outras lembranças. Ele me deu um cachorrinho de louça que guardei no baú de coisas. Junto com a bola de ping-pong toda furada de cigarro.

Quem é você?

Hoje estou numa casa que não conheço. Carluccio se casou comigo vinte anos depois. Em algum lugar em Marienbad. Lembro do perfume, da maresia. Das pequenas coisas que dissemos.

Mas não sei quem é você.

Uma vez me escondi durante horas, estava zangada, enciumada e triste. Chovia fininho e minha tia vestia um casaco marrom. Com uma girafa bordada e mangas compridas. Carluccio me achou e levei bronca dos parentes. Ele me pegou no colo, enxugou minhas lágrimas. A gente se amou por toda vida. Então surgiu este estranho, a casa escura, as cortinas que não se abrem, o cheiro que não reconheço.

Minha tia sorria com dentinhos pequenos. Seu nariz era arrebitado e eu gostava do jeito como ele franzia engraçado. Lembro do perfume de pão misturado ao do mar. E da terra molhada na primavera. E das flores que eu esmagava para fazer um suco amargo e envenenar os inimigos. Naquele tempo antigo eu odiava profundamente. E amava também.

Por que todos me olham como se eu fosse outra?

Carluccio dirigia um carro sem capota. Ás vezes me deixava guiar, eu adorava, ficava ali, sem sair do lugar, mas viajando longe, brisa nos cabelos. Marienbad. Onde nos casamos, lembra?

Não sei quem é você, não me pergunte mais nada.

As formigas faziam uma fila certinha, eu gostava de olhar, seguir seu caminho até o monte onde desapareciam com as folhas. E de arrancar a casca do meu pé ferido. Até pensei em dar para ele, mas desisti, minha mãe me olhou com cara de nojo. Era bonita, seu cabelo macio de beijar. Gostava do perfume dela e de meu pai.

E o melhor de tudo foi Carluccio, ano passado em Marienbad. Não, este foi o filme. Ou não foi?

Existiu Marienbad? Às vezes penso que lembro uma vida que não vivi. Crio um passado neste enorme cinza onde me afundo. A única coisa que sei é que não sou esta. A verdadeira está longe, deitada na terra, contando carneirinhos no azul e odiando Iolanda.

 
 
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