DESPERTAR
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Lisandra Gomes Coelho
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Ele havia acabado de chegar à cidade. Alto executivo do Marketing, levava uma vida confortável e monótona ao lado da mulher e três filhos na grande capital. Chegou, para uma semana de congressos, à pequena cidade litorânea, a qual tantas vezes havia visitado nas férias das crianças, e na qual havia visto tantas vezes a esposa perder a paciência por causa do trânsito, de água que faltava no prédio coalhado de outros turistas vindos da mesma terra que ele, das filas no restaurante na hora do almoço, entre outros etceteras. Era a primeira incursão solitária dele na pequena ilha em tantos anos. Estava instalado em um flat à beira-mar. Chegou tão em cima da hora da primeira reunião que não teve sequer tempo de largar as malas no apartamento. Foi um dia duro. Horas e horas de reuniões e coffee-breaks e dinâmicas de entrosamento para que os grandes responsáveis pelo marketing em várias empresas espalhadas pelo país pudessem se conhecer e trocar idéias. Achava tudo aquilo um saco, gostava de trabalhar com sua equipe na empresa em que estava acocorado há quase duas décadas, já estava habituado aos sujeitos todos de um modo que já era capaz de prever o quê cada um iria dizer, estava ali tão somente por insistência da esposa, que dizia que do jeito que estava acomodado no trabalho iria acabar um dinossauro da empresa, e ninguém quer dinossauros arrastando sua longa cauda pelos corredores de uma empresa da área de marketing e publicidade, correto? Respirou aliviado ao chegar de volta ao flat e poder tomar um banho gelado naquele calor infernal que fazia naquela cidade aquela Segunda-feira. Ninguém merecia usar roupa formal em uma terra como aquela. Deus sabia o que fazia e agrupara todos os grandes executivos do estado na, aparentemente, única cidade em que o clima permitia que se usasse uma roupa daquela. Havia um ar condicionado no centro de convenções, é lógico, aliás um não, vários, mas existe uma coisa chamada trajeto-de-volta-ao-flat que é impiedosa com todo o cidadão e era dela que se queixava internamente agora. Era cedo e, como nunca dormia cedo em casa, estranhou ficar sozinho naquele apartamento, assistindo à televisão, até porque aquele flat não oferecia os 258 canais aos quais ele podia ter acesso em sua casa. De bermudão e camiseta pólo, sapatinho mocassim, desceu para o hall do prédio. Informou-se na portaria, seguiu para uma pequena choperia badalada que havia perto dali. Tão logo chegou ao local repleto de jovens de jeans e camisetas furadinhas, percebeu que devia mesmo ser alguma espécie em extinção. Havia também, como diziam as garotas que freqüentavam o local, outros "tiozões" além dele, mas nenhum estava vestido para festa, ele era o único. Sentou-se à beira do balcão e logo chegou a bela a seu lado. De longos cabelos oxigenados devidamente domados pela chapinha, as lentes de contato faziam de seus olhos duas pequenas gotas de água suja. Mas era bonita, a danadinha, tinha, pelo menos, o sorriso natural. Belo corpo destacado pelo vestido justo. Não usava lingerie, isto ele logo pode ver, pois não havia, ao longo do vestido colado ao seu corpo, uma única marca. Bem, resumindo, ela era uma destas universitárias que precisam pagar a mensalidade da faculdade de alguma forma e acabou acontecendo o quê havia de acontecer: menos de uma hora e ela estava dando duro em seu ganha-pão. Não houve muita conversa, só o suficiente para que ela, estudante de Publicidade, começasse a se iludir com alguma possibilidade de carreira ascendente, já que estava numa situação tão oportuna com alguém que poderia lhe dar uma bela mão. É, mas o sujeito não estava mesmo muito a fim de conversa não. Fez o quê havia de fazer e virou para o lado, como estava acostumado. Ela ficou por ali, a seu lado, aguardando ansiosamente o momento em que aquele comum cochilo acabasse para que pudessem continuar conversando sobre as possibilidades dela em uma área que ele tão bem conhecia. Mas o cochilo dele só terminou às cinco da manhã do dia seguinte. Madrugador habitual, não era ali que iria conseguir mudar de hábitos. A única diferença é que, naquela manhã, não iria para sua copa ser servido pela empregada nem teria que ouvir a esposa falar sobre as despesas do dia, nem iria ouvir os filhos pedirem dinheiro para o lanche, para novos cd's de video game, nem para novos dvd's de terror que queriam ter na coleção. Dirigiu-se à sacada do flat, que parecia projetá-lo por cima do mar que contornava a pequena ilha. Ouvia apenas o cantar de alguns pássaros que já iam acordando e o barulho das ondas a quebrar. O céu, em matizes de azul, vermelho, laranja e violeta, parecia estar se abrindo, engolindo a lua e as estrelas. Deixou-se ficar ali, largado, de cuecas, assistindo, pela primeira vez na vida, a um espetáculo que jamais supôs existir. Os pássaros cantando e, por vezes, dando rasantes diante da sacada, pareciam exibir-se para ele, apenas para ele, em um balé de cores, sons e movimentos. O sol rompeu o céu no canto direito da ilha e, aquela cena inesperada, despertou dentro do velho executivo uma sensação nova, que lhe trouxe lágrimas aos olhos. A garota, nua, ergueu-se da cama e, dando pela falta do sujeito, procurou-o pelo apartamento; o viu apoiado sobre a murada da sacada, estático. Aproximou-se dele que, ao vê-la, abriu um sorriso lindo, como ela nunca vira antes. Sentiu-se lisonjeada. Percebeu que ele tinha os olhos mareados e perguntou se havia algo errado. Ele só conseguiu balançar a cabeça, indicando que não e, depois de alguns segundos, conseguiu dizer algo: - Eu nunca tinha visto nada tão lindo antes. Tantas vezes estive por aqui e, até hoje, nunca tinha visto nada assim. Encabulada, ela sorriu. Não havia nem penteado os cabelos ainda e ele estava ali, todo apaixonado por ela. E ia construindo castelos de ilusão ao ouvi-lo dizendo que era a hora de dar um jeito em sua vida, de modificá-la de dentro para fora; sim, amava os filhos, sim, respeitava a esposa também, sua companheira desde os 15 ou 16 (não lembrava mais), mas sua vida não fazia muito sentido, não havia encantos... estava fascinado com o quê havia acabado de encontrar ali, naquela pequena ilha... sabia que não teria a mesma vida confortável que levava na capital mas, quem se importa, quando se pode ter um pequenino e deslumbrante espetáculo diário todas as manhãs, ao acordar? - Poxa... é realmente muito gentil, Sr. Pôncio, mas eu ainda nem sequer penteei os meus cabelos e... E deixando-a falando sozinha, Pôncio vestiu uma bermuda, saiu do quarto e, vagarosamente, foi descendo as escadas do flat, em direção ao mar, para realizar seu casamento com sua nova companhia: a natureza. |