PRETA-PRETA-PRETINHA
Beto Muniz
 
 

- São Paulo, verão de 2006 -

A primeira vez que eu soube da existência dela neste mundo, foi na forma de um brilho no olhar. Ela me foi apresentada sem alardes, e dentro do silêncio se agigantou até não mais caber comigo no mundo e rompemos, eu e a existência dela, alguns limites que eu sequer imaginara delimitados. De repente a ciência dela existindo me calou - eu precisava extravasar, porém, o grito embolado na garganta não vingou e se transformou num sorriso. Senti as fronteiras d'alma se expandirem diante do impacto surgido desse saber. Era um quase não acreditar na minha incompletitude antes dela. Era a sanidade cambaleando na incredulidade de que algo tão ínfimo já pudesse atordoar meus sentidos e sentimentos revolucionando toda noção de vida, tempo e espaço. E ela era um vislumbre, um brilho apenas, entretanto, sem a necessidade de palavras, alcançou toda plenitude do amor que eu nem sabia existir em mim.

A primeira visão foi um ponto em branco e preto saltando, saltando e saltando num compasso selvagem. "Isso é uma perereca levando choques!" - registrei o nervosismo diante da imagem indefinida para mim. Depois houve o primeiro contato, era para ser um chute, porém foi além e se transformou numa sensação insólita rompendo a placenta, a pele, o tecido, entrando através da palma da minha mão e invadindo minhas veias, atingindo o coração. Semanas depois a emoção a flor da pele. A pele em contato com a pele, o calor, o zelo e todo sentimento do mundo ao alcance do tato... e de um brilho no olhar - não posso esquecer! Desde então se tornou possível o tempo passar incólume por mim, estou refletido nela. Os anos vão passando e a única diferença que percebo em nós é o sentimento parecendo semente de feijão plantado em fábula, crescendo, crescendo, se elevando além da compreensão e absolutamente presente, ao alcance da mão, num gesto de carinho; a disposição dos lábios, no beijo gratuito, por nada e, no entanto, representando tudo; refletindo nos olhos, clones naturais daqueles que me anunciaram a existência dela.

Ela é Giripoca quando quero irritá-la, é Cacau quando está febril, é Chulézinho se aninhando comigo no inverno, é Perereca no parquinho, é Preta-Preta-Pretinha no verão e também é Florzinha num abraço de tchau, boa aula, até mais, volto já, não demora!!! Mas antes de tudo e o tempo todo ela é a Catarina, minha vida. Eu não saberia escrever o quanto ela me fascina, nem ousaria tentar! Mas se alguém entender que esse emaranhado confuso de palavras é uma declaração de amor, que seja! Para mim, todo meu vocabulário reunido num só texto não conseguiria transcrever o que eu sinto. Qualquer poema meu, ou mesmo de Drummond, é menor que o sentimento por ela. Imune a minha impossibilidade de expressão, ela dorme em meu colo atrapalhando meu amontoar palavras neste espaço branco. A imaginação sugere invasões através de suas pálpebras, fazendo parecer que nem quando ela dorme o brilho no olhar se apaga... Como eu poderia dizer que é o mesmo brilho que irradiava dos olhos da mãe, no exato instante em que me denunciava a existência dela neste mundo?

Não poderia.

 
 
fale com o autor