CONTO DE FADAS
Bárbara Helena
 
 

" É fascinação, eu sei..."


Todos os dias acordava cedo para comprar pão.

E ficar plantada na portaria da Vieira Souto por onde o príncipe emergia de tênis, pernas morenas e longas, na direção do calçadão.
Voltava para seu quartinho, coração disparado, língua seca. Com mãos trêmulas de desejo fazia café.

Ninguém notava o ingrediente afrodisíaco da sua paixão. No máximo, o patrão moço beliscava sua bunda antes de pegar a prancha de surfe. Era bonita, corpão brasileiro de mulata jovem, dentes perfeitos, cabelo pixaim.

Nega de cabelo duro, qual é o pente que te penteia?

Cantava seu Osíris, um dos velhos safados nas damas do calçadão. Olhando as pernas inquietas, roubadas do tabuleiro.

Ela ria, se sabia gostosa, mas o príncipe era cego. Passava por ela sem olhar, óculos espelhados, boca costurada, tênis marcando um compasso marcial.

Ás vezes, via o Pajero sair, inventava compras de última hora. Fantasiava coisas, suspirava no rastro da gasolina, coração descompassado, vida bandida. Um dia.

Homens atrás dela tinha muitos, o Severino da portaria, o Zeca do posto, negão de machucar corações, o Lafaiete da gafieira, passos ensaiados, sorriso gasto. Mas só via o escolhido do seu coração , fantasia, maleita, loucura, é fascinação, eu sei.

Um dia, levou um tombo perto dele, não foi de vontade armada, só destino. Cavalheiro, segurou sua mão e viu os olhos: azuis, rajados amarelos no centro, inesquecível. Ainda teve sorriso de brinde com dentes perfeitos.

Levantou tonta, incapaz, queimou a comida, salgou o feijão, terminou no seu quarto, humilhada, perdida. Esta menina tá com a cabeça na lua, a patroa era humana, só descontou do salário, foi justo. O filho procurou sua cama, levou tapa na cara, a piranha se acha.

Engoliu a vergonha. Cinderela. Algum dia.

Amigas se cotizaram, organizaram o encontro. Com o dinheiro apurado comprou roupa de butique cara, foi em cabeleireiro de madame, alisou o cabelo, fez mechas louras, colocou sapato de cristal bem alto e decidiu enfrentar o destino.

Com ar de tédio, óculos escuros, entrou no prédio, onze horas da noite, chave conseguida em favores de Severino. O porteiro da noite dormia diante do vídeo. Atravessou os tapetes silenciosamente, entrou no elevador e suspirou de alívio. Conseguira.

Ele morava sozinho, ia se atirar nos seus pés, mostrar o corpo lindo de cabocla, morrer nos braços louros. De hoje não passa.

Em quartos pequenos e abafados, outras meninas como ela sonhavam, invejavam, torciam.

Pressionou forte a campainha, coração disparado. Nada de vergonha. É meu dia de princesa.

Ele espiou pelo olho mágico, entreabriu a porta, olhou para ela espantado e ligeiramente desconfiado.

Uma voz surgiu da sala, feminina e dengosa. Depois uma cabeça loura por trás dele, braços de cetim.

- Amor, quem é a esta hora?

O príncipe franziu o rosto, interrogando, seu coração parou, pernas tremiam.

- Desculpem, me enganei de porta.

Naquela manhã se jogou embaixo do Pajero. Quebrou as duas pernas, perdeu um dente e a esperança.

Nos próximos vinte anos se tornou cínica e continuou pobre.

Em compensação, ele ganhou barriga, papada dupla, uma úlcera e três ex-mulheres dispendiosas.

Deus é fiel.

 
 
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