"
É fascinação, eu sei..."
Todos os dias acordava cedo para comprar pão.
E
ficar plantada na portaria da Vieira Souto por onde o príncipe
emergia de tênis, pernas morenas e longas, na direção
do calçadão.
Voltava para seu quartinho, coração disparado, língua
seca. Com mãos trêmulas de desejo fazia café.
Ninguém notava o ingrediente afrodisíaco da sua paixão.
No máximo, o patrão moço beliscava sua bunda antes
de pegar a prancha de surfe. Era bonita, corpão brasileiro de
mulata jovem, dentes perfeitos, cabelo pixaim.
Nega de cabelo duro, qual é o pente que te penteia?
Cantava
seu Osíris, um dos velhos safados nas damas do calçadão.
Olhando as pernas inquietas, roubadas do tabuleiro.
Ela ria, se sabia gostosa, mas o príncipe era cego. Passava por
ela sem olhar, óculos espelhados, boca costurada, tênis
marcando um compasso marcial.
Ás vezes, via o Pajero sair, inventava compras de última
hora. Fantasiava coisas, suspirava no rastro da gasolina, coração
descompassado, vida bandida. Um dia.
Homens atrás dela tinha muitos, o Severino da portaria, o Zeca
do posto, negão de machucar corações, o Lafaiete
da gafieira, passos ensaiados, sorriso gasto. Mas só via o escolhido
do seu coração , fantasia, maleita, loucura, é
fascinação, eu sei.
Um dia, levou um tombo perto dele, não foi de vontade armada,
só destino. Cavalheiro, segurou sua mão e viu os olhos:
azuis, rajados amarelos no centro, inesquecível. Ainda teve sorriso
de brinde com dentes perfeitos.
Levantou tonta, incapaz, queimou a comida, salgou o feijão, terminou
no seu quarto, humilhada, perdida. Esta menina tá com a cabeça
na lua, a patroa era humana, só descontou do salário,
foi justo. O filho procurou sua cama, levou tapa na cara, a piranha
se acha.
Engoliu a vergonha. Cinderela. Algum dia.
Amigas se cotizaram, organizaram o encontro. Com o dinheiro apurado
comprou roupa de butique cara, foi em cabeleireiro de madame, alisou
o cabelo, fez mechas louras, colocou sapato de cristal bem alto e decidiu
enfrentar o destino.
Com ar de tédio, óculos escuros, entrou no prédio,
onze horas da noite, chave conseguida em favores de Severino. O porteiro
da noite dormia diante do vídeo. Atravessou os tapetes silenciosamente,
entrou no elevador e suspirou de alívio. Conseguira.
Ele morava sozinho, ia se atirar nos seus pés, mostrar o corpo
lindo de cabocla, morrer nos braços louros. De hoje não
passa.
Em quartos pequenos e abafados, outras meninas como ela sonhavam, invejavam,
torciam.
Pressionou forte a campainha, coração disparado. Nada
de vergonha. É meu dia de princesa.
Ele espiou pelo olho mágico, entreabriu a porta, olhou para ela
espantado e ligeiramente desconfiado.
Uma voz surgiu da sala, feminina e dengosa. Depois uma cabeça
loura por trás dele, braços de cetim.
- Amor, quem é a esta hora?
O príncipe franziu o rosto, interrogando, seu coração
parou, pernas tremiam.
- Desculpem, me enganei de porta.
Naquela manhã se jogou embaixo do Pajero. Quebrou as duas pernas,
perdeu um dente e a esperança.
Nos próximos vinte anos se tornou cínica e continuou pobre.
Em compensação, ele ganhou barriga, papada dupla, uma
úlcera e três ex-mulheres dispendiosas.
Deus é fiel.
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