NATAL
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Vera do Val
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"Meus
mortos estão guardados em mim mesma, por isso não os procuro
em sepulturas"
A chuva continua tamborilando na vidraça. Às vezes a mulher se confunde um pouco. Às vezes pensa que chove por toda a sala, que as coisas estão escorregadias, e suas ternuras enclausuradas deslizam pelos ralos. Vestira-se para a festa. Por todo o dia havia engalanado a casa. Os assados tinham sido encomendados com cuidado, preparou manjares, repicou os doces. A toalha de mesa, toda branca, fazia parte das preciosidades da família. A avó havia bordado em crivos quando muito jovem, naquele tempo em que as moças preparavam enxoval; a mãe herdou, e um belo dia passou para ela. Era guardada em uma caixa especial, envolvida em papel de seda e folhas de alfavaca. A louça fina espalhava-se sobre ela. Cristais antigos, laços prateados nos guardanapos. Distribuiu as velas em castiçais; pequenas delicadezas, como amores perfeitos salpicavam os móveis. A árvore, a um canto, já havia participado de muitos Natais. Guirlandas e estrelas como pirilampos, pacotes coloridos, azuis, amarelos, dourados e vermelhos. Estava ansiosa, como seria hoje? Deixou-se embalar pela lembrança do que tinha sido a estória, rostinhos expectantes à sua volta, pequenas mãos presas às suas, olhos confiantes. Acendeu as velas e esperou. Já era um pouco tarde quando eles chegaram e espalharam-se pela sala. Mamãe sempre tão caprichosa! Beijos desatentos estalaram como se estala pipoca no verão. Mais tarde olhou os rostos em volta da mesa. Maurício com o cenho franzido mesmo quando faz o brinde. Madalena envolta em si mesma, magnífica, coberta de jóias, o sorriso colado na boca, quase uma careta. Viera cumprir um dever que mamãe sempre espera, mas não se demoraria, muitos convites, sua vida era assim, uma roda viva. O marido não fala nem ri. Destroça o peru. Jóca atento à esposa que parece constrangida. Mas era preciso, mamãe nos espera. É só hoje, meu bem, amanhã iremos onde você quiser, basta sorrir um pouco, por favor, não a magoe, ela prepara tanto e pede tão pouco... Prima Sara esforçando-se para ouvir a todos. Pobre, já meio surda, com ar beatífico. Ser surda pode ser uma benção. Teria que ser cega também. Percebe o sussurro da nora e o sorriso contrafeito de Jóca. Ele sempre foi tão meigo. O mais terno entre todos, seu predileto. O que faltava? Crianças. Não pode haver Natal sem crianças. Mas crianças não estão mais na moda, era a contestação eterna de Madalena. Gritam, sujam não tenho tempo para isso, a empresa me devora, existem as viagens e Jean é um inútil. Maurício ria, dele não esperassem nada. Joca animou-se, talvez, sua mulher fez um muxoxo e deu de ombros. Contrafeito ele serviu-se da torta de nozes. Sua especialidade, mamãe! O vinho derramou-se sangrando a toalha imaculada. Mais um pedaço de assado? Ela se desdobra. Sorri para a mesa cheia, procura cumplicidade. Os olhos de Joca se desviam dos dela. Eles se foram. Repentinamente, um a um. A chuva continua tamborilando na vidraça. Às vezes ela se confunde um pouco. Às vezes pensa que chove por toda a sala, que as coisas estão escorregadias, que suas ternuras enclausuradas deslizam pelos ralos. No silêncio que engole o mundo, na tolha amarfanhada e ferida, na sobra da taça de champagne, a saudade vai aflorando devagar. Primeiro a mãe, com seus olhos azuis luzindo, se achega à mesa. Depois eles vêm mais rápido, o pai, na cabeceira, a tia sorridente e loura, a avó, bonachona, o tio e seu olhar tímido, o avô, quase esquecido. As irmãs trazem os filhos pelas mãos, crianças ainda, a algazarra enche a casa. Ela vê Madalena brincando de bonecas, Maurício debruçado no quebra cabeças, Jóca no cavalinho de pau galopa pela sala. É quando mamãe serve a torta de nozes. Sua especialidade, mamãe! Ela sorri e levanta o brinde. - Vocês demoraram.... |