PEDIDOS, PERDIDOS
Samuel Silva
 
 

Verão. El Niño. Um calor do cão. Ar condicionado no máximo. Temperatura do motor alta, quase superaquecimento. Jotacá olha o botão do ar no painel em muda prece por melhor desempenho. Um som seco de pancada se repete. Ele olha. Uma menina mal-vestida com uma caixa de chocolates vagabundos. Quer um trocado. Jotacá meneia a cabeça em negativa, o sinal abre, o carro avança.

Mais um sinal. Mais um aquecimento exagerado do motor. Um dia ele pifa. Outro menor pedinte com grandes olhos negros do outro lado da janela de vidro fechado. Outro "não" de cabeça. Jotacá pensa na adriane galisteu, garotas do Faustão, na capa da playboy. Fica excitado, mexe no pênis, sonha com melhor sorte na noite que começa a cair.

Outro sinal. Jotacá xinga a mãe dos controladores de tráfego, a mãe da mãe dos engenheiros de trânsito que não encontram um meio de fazer o engarrafamento desengarrafar. Uma adolescente de saia e blusa de quando ela era criança se aproxima, os cabelos sebentos caindo sobre os seios que despontavam sob o tecido maltratado. O ar condicionado treme, tosse e apaga. O sinal fica verde mas ninguém anda. A garota pede dinheiro, ele nem precisou ouvir para saber. Fingiu-se de surdo e cego, maldizendo o calor e o tempo perdido.

Tempo perdido em progressão geométrica, poucos metros andados em tantos minutos! Jotacá folheou a Playboy, massageando o pênis por sobre a calça. Baixou o vidro, chamou um ambulante e lhe comprou cerveja. A presença dos vendedores de cerveja, refrigerante e biscoito de polvilho denunciava que o engarrafamento era grande e demoraria a se esvair. Era abutres do trânsito, moscas da putrefação das cidades dos automóveis. Manteve a janela aberta, o ar condicionado pifado, outra cerveja, mais outra, bebidas como água em grandes e apressados goles, empurrando a raiva e a frustração.

Pelo retrovisor, viu a adolescente de saia e blusa ziguezagueando entre os carros, pedindo um trocado a cada motorista, com pouco ou nenhum sucesso. De tão parados os carros ela acabou alcançando novamente Jotacá, reiterou o pedido, desapercebida de já te-lo feito a ele. Jotacá bebeu o resto de cerveja e jogou a lata na rua, os olhos fixos pulando dos seios da menina para as pernas magras que saiam por baixo da saia. Olhou-a nos olhos e perguntou a idade; ela sorriu, matreira, vendo a brecha da sensibilização, recitou um número menor que o real, os olhos aumentados na representação da criança sofrida.

Jotacá riu, brincou sobre não existir nada grátis no mundo e que faria melhor ela se trabalhasse, arrumasse emprego até em casa de família. A menina fez cara de enjôo, cansada do sermão tantas vezes ouvidos, com as mãos na cadeiras, um ligeiro requebro, a resposta agressiva da juventude agredida.
Das emanações internas da cerveja subiu um princípio de idéia que Jotacá abraçou e amenizou a voz, adotando o tom sedutor de filmes americanos; se viu brad pitt, se viu galã. O braço pendia para fora do carro, a outra mão largada no colo e a conversa mansa saindo melíflua de sua garganta ressecada, até assumir contornos de proposta. A garota olhou para os lados, entre assustada e prevenida, perguntou quanto, ele disse, ela aceitou de olhos baixos mirando os pés descalços.

Era noite quente, ele jogou o carro sobre a calçada, colocou o triângulo de segurança no parabrisa traseiro, dentro ainda do veículo, fez sinal para a menina e caminhou para uma área escura, entre árvores e muros altos. Ela o seguiu.
A menina que seria bonita não fosse a rua, o cheiro da rua, a cor da rua, a sujeira da rua, rua qualquer em que ela dormia e vivia. Ela parou em frente a ele, olhos sempre baixos. Ele levantou a blusa dela, viu os seios ainda em formação, cônicos, trágicos, a barriga seca da fome; abaixou a saiazinha, viu que estava vestida com uma velha cueca infantil, batman e robin escondidos entre manchas antigas. Jotacá viu o sexo ainda infantil, sem pelos, enquanto enfiava a mão dentro de sua calça e começava a mexer com o pau com força, excitado com aquela visão, trânsido de emoção, a transgressão multiplicando o tesão.

Ele tirou o seu membro e pediu para ela virar de costas, prometendo não machucá-la. Ele agora era o pedinte, pedindo para violar aquela vida já bastante ultrajada. Ela balançou a cabeça em gesto de negativa, se fingindo de surda e de cega, enquanto ele se masturbava com uma mão e tocava-lhe os seios com a outra.

Ele se irritou, puxou-a para si, forçando o beijo, o abraço, a penetração. O medo dela era pedido de paz, que ele a largasse, que ele se satisfizesse sozinho sem a envolver, sem tocá-la, não fora o pedido que ele fizera, não fora o pedido que ela aceitara.

Uma voz feminina ao longe se fez grito, uma voz masculina mais próxima se fez ameaça e Jotacá tudo ouviu como sons de longe, do passado, sons de tela de televisão, enquanto tentava encaixar seu membro entre as pernas da menina.

Um puxão, um repelão, uma pancada, um som alto, surdo, uma sensação de ardência fria no peito. Jotacá olhou para a frente vendo os olhos da menina surrealmente arregalados, os movimentos lentos como num esgarçar do tempo, a boca aberta em uma última súplica. Ao lado dele, Jotacá viu o homem de azul escuro, rosto negro de olhos avermelhados de ódio, a mão direita transformada em um cano esfumaçado. Do peito de Jotacá, sangue e um pedido de desculpas, antes de cair morto na calçada.

 
 
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