HOJE
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Raymundo Silveira
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Anões. Médicos, enfermeiros, zeladores e visitantes. Como poderiam cuidar de mim aqui em cima? Não cuidam. Apenas tomam notas e tiram fotografias. Me olham como se já tivesse morrido. Pior: como se eu fosse uma coisa rara. Uma peça de museu. Há uma curiosidade desleixada. Um interesse desinteressado. Impossível me mexer. Sequer piscar. Devo ter tido um derrame. Só pode ter sido isso, uma trombose. Vejo e não posso falar nem escutar. Não pode ser derrame, os médicos saberiam. Haveria equipamentos: monitores, soros, injeções. Mas não, nenhuma intervenção. Lucidez intacta. Percebo tudo. Comparo tamanhos. Há desproporção de seis para um entre o meu e os dos outros. Intuo um equívoco. O porte das pessoas só é pequeno em relação a mim e ao leito. Somente eu e a cama teríamos aumentado? Não faz sentido. Aí sim, estaria delirando. E se fosse isso mesmo, um delírio? Li muito. Busco meus conhecimentos: para que haja delírio tem de haver convicção inabalável. Não é o caso. Se alguém se comunicasse comigo e argumentasse objetivamente, me convenceria da absurdidade. E se eu tivesse me transformado numa coisa... Numa estátua? Hipótese mais grave do que a do delírio... O que é o absurdo? Tudo o quanto não é explicável? Quem garante ter sido uma lenda a passagem bíblica sobre a mulher de Ló? Procuro um meio de me comparar com uma coisa. Para coisas o tempo não existe. Necessito dessa idéia como premissa. Não me iludo: não há relógios. Cato alternativas. Espaço e tempo se inter-relacionam. Então, observando o deslocamento das pessoas em meu redor, o segundo poderia ser avaliado. Um homem tira fotos de vários ângulos. Alguns inacessíveis ao meu campo visual. Mas posso observar muitos movimentos. Logo, o tempo passa. Logo, não sou uma coisa... Fabrico um relógio mental: contar as variações de lugares dos observadores. Duração aleatória. Precisão desimportante. Careço também de dias e noites. Decido separar por gêneros. Mudanças de posições de homens serão dias. De mulheres, noite. Preciso fazer existirem. Aprendi com Borges: nomear é fazer existir. Então, contarei as "horas" do dia em "sóis"; e as da noite, em "luas". Não serão "horas" tais, mas "horas" quanto. Não saberei quando é meio-dia, nem meia-noite. Apenas a duração relativa dos fatos. Um pouco de alívio, mas a ansiedade continua. Incomoda a carência de atenção. Digo melhor, de interação. Atenção tenho demais... Menos a mais necessária: atenção médica. Examino opções. Só há uma: tentar me comunicar. Impossível mexer qualquer músculo. Tenho de descobrir outro meio. Apelo para a telepatia, embora não acredite em fenômenos extra-sensoriais... Miro fixamente uma enfermeira distante. Concentro o pensamento. Nenhuma resposta. Não desanimo. É a única saída. Depois de oito "sóis", ela olha. Deixa o posto e vem em minha direção. Aproxima-se e me encara detidamente durante outros cinco "sóis". Esforço-me para sorrir. Em vão. Dá as costas e retorna. Pára e se volta para me fitar mais uma vez. Retira-se. Sinto um pouco de ânimo ao esperançar a telepatia. Quem sabe, depende de outros fatores. Leio um crachá e decido experimentar nome e fisionomia do portador. Me encara com espanto durante alguns "sóis" e fala com um companheiro. Que meneia negativamente a cabeça e sai. O outro continua me olhando espantado. Funcionou. Mas sem resultados práticos. Vai embora, vez em quando se voltando para olhar. Desisto. Da telepatia, não de lutar. Posso prescindir de ajuda física. Só o desconforto emocional incomoda. Tenho de evitar. Cultivando atividades intelectivas. Ganhando tempo. A vida é oblíqua. Gente e coisas nunca se encontram. Por que a falta de comunicação desconforta? Seria insuportável viver só? Independente de tudo e de todos? Absoluta e permanentemente só, como me encontro agora? Sempre haveria algo para preencher o vazio: um som, uma flor, um cheiro, um sabor. Coisas que dependem dos órgãos dos sentidos. De mim. Ora, se só existem porque existo, não existem, de fato. Logo, eu continuaria sozinha. Essa tolerância ao nada seria variável? Pessoas não podem passar sem a arte. Outras há que dispensam observar o firmamento. Principal motivação da contemplação humana até onde alcança a memória ancestral. Conheço poetas cujo hermetismo ao pensar e ao sentir atinge as raias da incomunicabilidade. Será que se comunicam só consigo próprios? E se esta suposição estiver correta, seriam capazes de se bastarem a si mesmos? Um homem e duas mulheres se aproximam e quase me tocam. Me examinam tão de perto que me atravessam com seus olhares. Sou vidraça de vitrine. Enigma convergente de todos os enigmas. Alvo insólito de curiosos sem curiosidade. Não me perturbo. Entrego toneladas de recatos em troca de gotas de luz. Não tenho ilusões, mas uma ânsia veemente de verdade. Disposta a me resignar com o meu destino, desde que encontre uma explicação racional para ele. Não espero fé, mas certeza. Abdico da liberdade, contanto que conheça o mistério. Renuncio a qualquer esperança, se a dúvida for removida. Propensa a aceitar um castigo eterno, se me mostrarem que sou produto de um acaso. Uma causa sem causa e sem efeito. Um lugar sem aonde. Um dia sem dia. Os intrusos se afastam. Volto a me concentrar nos exercícios mentais. São nesgas de consolo, mas razão exclusiva e suficiente para existir sem desespero. A noite fictícia me envolveu. Tinha perdido a noção do "tempo". Ignoro por quantos "sóis" ou "luas" estive sob a mira a queima roupa dos estranhos. Invoco um mistério fascinante: a dicotomia entre criaturas vivas e mortas. Existe uma fronteira precisa. As transformações da vida são harmoniosas. Os fenômenos brutos, caóticos. Jamais deixam de me impressionar quando comparo. Nos vivos, nada acontece por acaso. É a lógica molecular da vida. Cogitar sobre isso é ler um poema famoso. Com uma diferença: trata-se de um poema natural e coerente, portanto mais admirável. Gasto doze "luas" a meditar sobre isso. Enveredo por um terreno pedregoso e perigoso: o da livre criação. Como não posso escutar, tento ver a música. E vejo. Noturnos sem formas geométricas definidas. Sonatas, sem movimentos e sem instrumentos, que não contrastam quanto ao andamento, nem à forma de expressão. Fugas poliédricas sem contraponto imitativo. Sinfonias de timbre único executadas só por um instrumento. Concertos sem consonância de vozes de sons e de harmonia... Ainda assim são peças deleitosas e autogratificantes porque resultaram exclusivamente da minha imaginação. Súbito, preamares de Dalis invadem-me a mente e o alcance visual. Homens com cabeças voltadas para trás dormindo com um olho só, enquanto mantêm o outro acordado. Bandos de pássaros voando em marcha a ré. Novelos e carretéis de contorcionistas transfixados ao centro pelos eixos das linhas de máquinas de costurar, cerzindo armaduras de folhas-de-flandres. Mulheres vestidas de madrepérolas, cuspindo lavas de invernos e geadas de primaveras. Peixes alados, de olhos fixos, do tamanho de focinhos de focas, devorando cardumes de baleias. Oceanos calcinados. Nuvens de ferro. Montanhas líquidas. Ventos coloridos. E uma legião de mortos vivos bailando ao som de mudas balalaicas. Enxergo amanheceres sem manhãs. Sonhos sem sono. Sentimentos sem sentires. Incompletudes. Ânsia de esperar pela sombra atrasada e conversar com ela sem ter de responder. Parir palavras sem precisar falar ou escrever. Renascer para não ser. Mas nada acontece. Nem espontaneamente, nem por acaso. Exceto uma assembléia de ninguéns, num ambiente sem substrato, tentando reivindicar anódinos porquês, sem ter a quem. Teorias ouvidas em conferências proferidas por mestres ausentes, assistidas por espectros semimortos para serem aplicadas em semivivos. Enquanto esquálidos alaridos explodem pulverizados, pulverulentos, pavorosos nos ventres de multidões de ventríloquos. Há excesso de coragem onde todos são covardes. Tais quais máquinas de fazer tempo sem tempo para fazê-lo, pois os donos ainda não tiveram tempo de aprender a ler para decifrar as instruções. Perdi a noção das "luas" e dos "sóis". Já não sei se é "noite" ou "dia". Muito menos se é "noite" noite, "dia" dia, "noite" dia ou "dia" noite. O aglomerado de visitantes se desfaz. Os médicos e enfermeiros também desapareceram. Estou desesperada. Ficou somente um homem uniformizado. Apaga as luzes, fecha todas as portas e sai. Deixaram-me nas trevas, completamente abandonada. Não há mais dúvida alguma: sou uma peça despedaçada de museu... |