UM SALTO NO ESCURO
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Luís Valise
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Visitar cemitério no verão é fogo. O labirinto de túmulos lança línguas de calor em torno do pescoço de Denise, e aqueles caminhos de chão irregular, de pedras desniveladas acabam com o salto agulha que ela não dispensa nem morta. O Alencar tanto insistira que acabou prometendo, e agora era aquele inferno. - Você vai me visitar no cemitério, no dia do meu aniversário? Promete? Jura? Denise prometeu, jurou, o Alencar estava tão magrinho, olhos fundos, um fiapo de voz embalada no mau-cheiro que vinha das entranhas corroídas pela coisa ruim... Sentada no criado-mudo, capuz, foice desembainhada, a morte acompanhava o papo com ar de enfado. Pouco ligava se a promessa seria ou não cumprida, só estava ali esperando o instante escrito nas estrelas, quando ela passaria o fio da lâmina sobre os cabelos ensebados: o Alencar sentiria um calafrio descendo pelo pescoço, seu peito emitiria um ronco de porco fuçando trufas, e suas falanges, falanginhas e falangetas restariam semi-curvas e abandonadas sobre o lençol azul. Um silêncio tantinho carregado de horror, e Denise não saberia dizer se o que sentiu era tristeza ou medo da liberdade. A enfermeira encostou o estetoscópio no peito descarnado, e com dedos experientes de treinador de passarinhos cerrou as pálpebras do defunto. Denise colocou os óculos escuros para ocultar a ausência de lágrimas. Foi um enterro com poucas pessoas, porque Alencar era sujeito discreto: - Só a família, e já é muito. Com aquele salto agulha Denise não poderia mesmo ficar sozinha muito tempo, e quando resolveu reformar o apartamento conheceu um vendedor de persianas que começou lhe dando pêsames, e, dizendo que a vida é mesmo assim, acabou dando palpites na escolha de uma nova cama de casal. A família do Alencar achou aquilo um escândalo, e piorou quando soube que ele era casado. Uma ex-cunhada veio tirar satisfações: - Você ficou louca, Dê? Meu irmão nem esfriou, e você já está com outro, ainda por cima casado? Denise não caiu do salto: - Lógico, queridinha! Melhor um casado que um com câncer. A vida não é cinema, e logo o vendedor foi cantar em outras janelas. Mulher fiel, Denise manteve a promessa, e todo ano visita o túmulo do Alencar no dia cinco de fevereiro. Este ano caiu num sábado de carnaval, e ela dispensou viagem com uma turma de amigos ao litoral. Uma gota de suor escorre da têmpora. Denise passa a ponta dos dedos e sente os cabelos colados à testa. Por que o Alencar não nasceu em agosto? Um salto cravado na terra faz seu pé escapar do sapato. Denise apóia-se na beira de um túmulo de mármore negro, enfia a ponta do pé e puxa o sapato para cima. O longo salto está sujo de barro. Ao calçar o sapato nota as veias saltadas sobre o peito do pé. Naquela idade o salto exige mais coragem que elegância. De longe vê uma mulher parada junto ao túmulo da família do Alencar. Aproxima-se, cumprimenta a mulher, e pára defronte ao túmulo vizinho. Queixa-se do calor. A outra mulher é mais nova, está bem-vestida e tem um lenço apertado entre os dedos. Denise, cínica: - Marido? - Namorado. Quer dizer... (baixando a voz) amante. Éramos amantes. Apaixonados. - Que lindo isso... Durante quanto tempo? - Quatro anos. O homem da minha vida. Agora, nunca mais... Denise examinou a outra cuidadosamente. Era mais bonita. Mais elegante. E usava salto alto, altíssimos. Investigou se era coincidência: - Difícil hoje em dia andar com esses saltos, hein? O chão todo esburacado... - Ele adorava. Por ele eu faço tudo. Denise se aproximou, e de repente deu um empurrão com toda a força na mulher, que sem ter onde se apoiar caiu para trás, batendo a cabeça nas pedras do calçamento. Se estava desmaiada foi por pouco tempo, porque Denise abaixou-se ao seu lado, tirou o sapato e enfiou o salto sujo de terra em seu olho esquerdo. Todinho, até o fim. A mulher teve um grande estremecimento, sentiu um frio descendo pelo pescoço, e parou de respirar. Denise enfiou o salto do sapato na terra para limpar o sangue. Depois calçou-o, e fez o caminho de volta sem se despedir do Alencar. |