ONDA
Beto Muniz

Nunca soube o nome de batismo dela. Quando percebi aquela garota já fazia parte da turma. Soube que o apelido dela era Onda e não estranhei. Também não achei esquisito ela ficar horas a fio olhando estrelas, madrugadas inteiras observando o céu.

Onda chegou da capital num final de ano letivo e não explicou bem por que a família tinha se mudado para a área rural. Acho mesmo que ninguém perguntou sobre ela, a vida dos pais e o que estavam fazendo ali, na vila. Dos machos da turma só eu não tinha liberdades com ela. Ficava no meu canto, de soslaio, sondado seu jeito extrovertido, achando lindo o riso fácil de dentes emparelhados e quando ela se distraia eu espreitava as formas arredondadas dos seios, escondidos debaixo da blusa, ou a calça justa sobre as coxas grossas. Onda parecia também que me sondava sem encontrar um meio, dentro da sua simpatia espontânea, de abordar o magrelo calado que preferia ficar ao largo, cutucando formigueiros enquanto a turma fazia graça do nada e piadas de tudo.

Onda percebeu que eu destoava dos demais e cultivou interesse silencioso pela minha figura quixotesca. Alto, magro, cabelos compridos e cacheados, alguns fios de barba apontando no queixo e sempre um livro ou um pedaço de pau nas mãos. Eu mesmo não sabia como e porque fazia parte daquela turma, mas gostava de ficar por perto, freqüentando os mesmos lugares, dividindo os mesmos recreios, comendo os mesmos lanches, repartindo os mesmos cigarros e bebendo das mesmas garrafas. As outras três garotas da turma gostavam de mim por causa das poesias que eu recitava, os amigos porque eu era bom de briga. Não lembro dos meus adversários, mas era freqüente que os seis integrantes machos da turma contassem, entre risos e admirações, histórias de brigas memoráveis onde eu espancara valentões famosos. Eu achava tolice vangloriarem meus feitos e pensava que a coisa mais natural ao se meter numa disputa com socos era socar! Não tinha que conversar muito quando a encrenca já estava estabelecida! E assim eu enfiava o braço nas fuças de qualquer um que se metia com um dos integrantes da minha gangue. Talvez eu não fosse bom era de conversa.

Nas madrugadas de sábado íamos, onze figuras distintas, para a beira do rio ver a noite se acabar. As garotas formavam casais, e eu que não misturava assuntos do coração com o coletivo, fazia companhia para os amigos solteiros de abraços e beijos. Caso tivesse acontecido uma briga então eu preferia ficar afastado dos outros, curtindo dores, deitado na grama olhando para as estrelas... ou além. Das poucas vezes em que nos acompanhou, Onda não formou par na beira do rio. Ficava com os solteiros falando sobre as estrelas que eu, calado, observava desde sempre. Depois ela se cansava de falar e deitava na grama para olhar o céu. Cada qual de nós amanhecia sozinho, os outros dormindo ao relento, ela acordada, olhos bem abertos, quase nem piscando. Se alguma estrela cadente cortava o firmamento, de pronto eu pedia que Onda fosse minha. Lá na falta de jeito dela, Onda percebia que eu também não dormia, nem assim nos falamos.

No meio do ano seguinte a turma estava desfeita. Alguém foi embora da vila, outro engravidou a namorada e casou - uma judiação! e ambos eram da gangue. Fulano foi morar com o pai, sicrano foi convocado para o exército, beltrano não tinha nada a ver comigo... Acabei deixando de brigas, porque eu sozinho jamais arrumava encrenca. As madrugadas de sábado me pegavam solitário no mesmo cenário. Improvável Don Quixote observando estrelas na beira do rio e pensando nos olhos dela, Onda, abertos, sem sono, repletos de mistérios, acompanhando estrelas cadentes riscando o céu que compartilhamos algumas vezes, calados. Ainda hoje sinto que deveria ter falado com ela sobre nossa sintonia. Ou mesmo ter ofertado uma chance dela se aproximar e destilar sua simpatia. Seria mesmo uma delícia terminar o adolescer vendo estrelas com Onda, em MG, em SP ou em qualquer outro estado. Mas a vida real é tão improvável, tão cheia de receios, surpresas e obrigações que as possibilidades de prazer ao lado dela foram sendo deixadas para depois, depois, outra hora, próxima oportunidade e acabei priorizando novos eventos. Um dia soube que Onda tinha partido, ido embora da vila. Eu me vi jogado noutra dimensão, diferente daquela planejada dentro das vontades. Tudo se acabara... "Lendas, superstições tolas! Estrelas cadentes não atendem pedidos" - concluí enquanto mais uma delas riscava o céu. O rio era o mesmo, o cenário também, diferente era a sensação de que viver poderia ser simples se eu conseguisse expor meus sentimentos e desejos. Mas éramos tão complexos, tanto eu quanto Onda, erguendo defesas contra algo que não pretendíamos repelir.

Nunca mais soube dela. Onda é uma cicatriz no sentimento me fazendo imaginar que ainda estamos observando estrelas juntos, eu na sacada do meu apartamento em São Paulo e Onda na beira dum rio em Minas Gerais, ou noutro lugar qualquer.

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