O ENCONTRO
Zeca São Bernardo
 

Sábado, meia- noite, atrás da igreja você vai encontrar o seu destino!- foi esse o recado que o moleque trouxe aquela tarde de quinta-feira para Manoel , da parte de João Pé de Vento seu eterno rival na capoeira, nas rodas de samba de vela, nos atabaques da casa de pai José Getulio e no coração da mulata Rita. Essas palavras não o deixaram dormir, tão pouco ficar sossegado pelos botequins onde era velho conhecido de todos.

Parece até macumba...murmurava para si, coisa de exu Caveira para baixo- tinha certeza. Que bom cristão marcaria um encontro num sábado- de- aleluia e atrás da igreja?- questionava-se.

Não, não, isso não está cheirando muito bem- falou ao reflexo no espelho enquanto fazia a barba com a navalha sempre afiada- se pelo menos o tal encontro fosse nos arcos da Lapa, poderia crer que Pé de Vento mudara de time, emboilara- como se dizia na época.

Mas aquilo de marcar encontro com outro homem atrás da igreja só podia ser acerto de contas, desafio ou duelo.

Que venha, bradou ao gato na janela! Que venha aquele fedorento, daqui levarei minhas armas e como ele se furtou a dizer quais levarei o que? - perguntou-se.

Mandou aviso ao rival: que fosse já de terno de linho branco, camisa de seda, chapéu Panamá enfiado na cabeça e um cravo vermelho no bolso para facilitar na hora do enterro. De sua parte faria o mesmo. O menino que levava e trazia recados morro acima e abaixo sorriu e com a promessa de ganhar alguns tostões- caso Manoel fosse o vencedor- apenas sorriu e saiu á procura de Pé de Vento.

Alguns anos antes Manoel não pensaria duas vezes no que e como faria mas agora as coisas eram um pouco diferentes! Tivera um dos joelhos comprometidos numa desavença com a policia. De forma que a pendência seria resolvida ou nos socos- também lutava boxe ou pensava que o que lutava era boxe- talvez a bala- bastariam uma no revolver de cada lado ou Pé de vento ia querer brincar de roleta russa outra vez, não sabia- talvez o melhor fosse chegar e passar logo a navalha na cara do canalha sem dar-lhe chance se quer de falar um boa noite malandro velho.

Malandro velho, pensou, não lembrara quando fora chamado de malandro a primeira vez. Mas não esqueceria jamais a primeira vez que fora chamado de velho. Ainda outro dia o engraxate passou pela Praça Mauá, sorriu-lhe e disse: vai graxa ai, meu velho?

Sim estava velho e daí? Isso o tornava menos homem, por acaso? Claro que não, só mais prudente, mais vivido preferia pensar.

Sim mais vivido, mais experiente e era justamente essa experiência toda que lhe dizia que não podia esperar boa coisa vinda de outro malandro velho como era Pé de Vento.

Vestiu-se, colocou a navalha no cos da calça, dois punhais presos na cinta pelo lado de dentro e o velho revolver no coldre preso ao peito. Sorriu, saiu de casa não perderia a missa por nada no mundo.

Pediu a benção do padre e alguns conselhos, passou o resto do dia pelas redondezas da igreja levantando as condições do local para o embate. De fato não havia á onde Pé de Vento esconder um ou dois comparsas, atrás da igreja ficava a praça em campo aberto.

Quando a noite caiu ouviu o ronco dos atabaques do outro lado do morro e murmurou um pedido de benção a seu orixá: Ogum Iê, meu pai! Logo vamos nos ver.

Um ou dois tragos de pinga no boteco da esquina, acendeu um charuto barato, jogou um carteado com velhos conhecidos e dessa vez não roubou muito nas cartas.

Seu destino o aguardava atrás da igreja...essas palavras não saiam de sua cabeça.

Dez, onze horas, a madrugada que se aproxima o deixa angustiado. Não havia mais movimento na rua, dirigiu-se ao local onde encontraria seu destino e esperou.

Pegou o relógio de corrente e consultou diversas vezes, os minutos se arrastavam, o tempo não queria passar. E ele não queria morrer, não sem uma boa briga!

Três minutos passados da hora, pensou em desistir.

Que que é isso, Manoel!- corrigiu-se em voz alta- Um malandro têm que ter palavra, se não ninguém respeita na gafieira... e riu.

Dois vultos surgiram ao longe, subiam a ladeira apressadamente e era-lhe impossível reconhecer-lhes, precisava de óculos o velho. Só que não o admitia.

Sacou o revolver do coldre e bradou: quem vem lá? É de paz ou da parte do covarde Pé de Vento?

Covarde?- indignou-se Pé de Vento a responder- Como covarde, malandro velho?

Manoel mirou e esperou que se aproximassem devagar, só ai reconheceu Rita e baixou a arma.

O que é isso? Que brincadeira é essa Rita?- perguntou!

Manoel...não somos mais crianças, acho até que nem malandros somos mais! O mundo está mudando muito rápido e eu tenho uma proposta para te fazer- disse Pé de Vento.

Proposta, é- admirou-se Manoel.

Na verdade, a proposta é minha- disse Rita - sei que a briga de vocês é por minha causa e a verdade é que não vivo sem os dois!

Sim, e?- perguntou Manoel.

Ora Manoel...a vida não vai durar para sempre, o que Rita quer dizer é que podemos ser felizes os três e á três- despejou-lhe de uma vez Pé de Vento!

Como é que é? Nós três... vê só se pode uma coisa dessa, não divido mulher minha com ninguém!- afirmou o malandro velho.

Então vou-me embora e me caso com Geraldo, disse Rita, e vocês que se matem.

Manoel coçou a cabeça uma, duas vezes, disse que precisaria pensar. Mas não pensou muito não, antes de Pé de Vento e Rita virarem a esquina gritou-lhes os nomes e correu feliz na direção dos dois.

É, foi esse o encontro de Manoel com seu destino á meia noite atrás da igreja. Primeiro e último encontro que marcou com alguém atrás da igreja velha da Lapa.

E lá na Penha onde moram os três felizes até hoje na mesma casa e beirando quase os setenta anos, muita gente fala que isso é indecência pura. Mas que sabem a s beatas da felicidade? De sorte, do amor, do jogo, das cartas, das navalhas, dos punhais, da gafieira, de Rita, de charutos baratos, de cachaça ordinária, de revolveres enferrujados, de samba, da vida e da morte e do destino e de tantas outras coisas que vão passando...

 
 

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