JÁ ACONTECEU COM VOCÊ
Alberto Carmo
 
 

Você está subindo a escadaria de algum edifício. Pode ser um banco, o Fórum, ou o Palácio da Alvorada. Não importa. Você está galgando os degraus, olhando para o relógio - atrasado, para variar. E, quando levanta os olhos, dá de cara com ela. Uma mulher lindíssima descendo na contra-mão. Você fica paralisado no meio-fio e só consegue mover o pescoço - uns 365 graus nos dois sentidos. E vai seguindo aquela trajetória que deixou um fio de perfume volitando ao seu redor. Você cancela mentalmente o compromisso e pensa consigo: - Olhar à direita. Meia volta, volver! Marche, ordinário!

Olha para os lados e para cima - nenhum táxi. Ninguém a quem dizer: - Motorista, siga aquele avião! E sai na captura, cantarolando mentalmente o tema de "Com 007 só se vive duas vezes" - e seu divórcio mal saiu do prelo.

Você volta pela escadaria de dois em dois degraus. Pisa em falso e cai com o esfíncter bem na quina. Mas, sem desgrudar os olhos dela - agora já prestes a cruzar a avenida. Num sprint fenomenal, você entra no vácuo dela e constata que ela é muito mais linda do que imaginava no primeiro relance - frente e verso. E que verso... Valha-me, Drummond!

Sinal verde, ela pede passagem. Você relembra as aulas de educação física e se alinha àqueles passos estonteantes. Direita, esquerda, direita, esquerda... Ela não anda, apenas ordena que a sigam.

Já na outra margem, ela sobrevoa a passos rápidos e se mistura à multidão. Você se revolta com a invasão em sua área e dá um, dois pulos. Três se necessário - arrependendo-se amargamente de ter deixado o time de basquete da faculdade. Vislumbra, entre os pedestres, os dourados fios que enfeitam aquela obra-prima. E voa feito um mecenas, driblando office-boys, camelôs e engravatados. Em segundos já está à distância de um "psiu".

Você já notou que nessas horas a garganta seca, a pulsação faz o botão do colarinho sair voando feito um OVNI e a gente percebe que o sapato está mal engraxado? E aquele lenço com as suas iniciais, feitas carinhosamente pela mamãe, vira flanelinha no ato. Mas você deixou passar segundos preciosos. Ela entrou na galeria e você perdeu o fio da meada.

A passos de Teseu, você encara o labirinto com unhas e dentes. Fica na ponta dos pés, faz uma cobertura nos olhos a quatro dedos - mesmo sabendo que dentro da galeria não bate sol - e gira o periscópio. Cadê ela?

De repente, você se vê diante do mais difícil teste de múltipla escolha que encarou em sua vida, desde o vestibular. À direita, três butiques coreanas, uma loja de calçados, uma barraquinha de churros e duas cabines telefônicas vazias. À esquerda, um banco, outro banco e... o balcão de informações. Você sente que os céus estão do seu lado e pede, quase em prantos: - Você viu pra onde ela foi?

Diante dos risinhos da doce recepcionista você percebe que está num mato sem cachorro. Começa a sentir coceiras em lugares nunca dantes navegados. E sai andando a esmo. Sente que precisa de apoio e entra na livraria da esquina. Vai direto, sem pestanejar, até a prateleira dos evangélicos.

Mas, entre o setor de economia e de best-sellers, ei-la que ressurge, esverdeando as páginas de algum autor felizardo. Você freia seu ABS, sem ranger os dentes, e caminha cauteloso entre os volumes. Súbito, ela se vira para você. Macaco velho, você toma emprestado o primeiro tomo que vê pela frente e faz ares de leitura profunda. Ela ri. Você acha que vai fisgar o peixe. Mas foi pego pela boca, lendo "A Cozinha Maravilhosa da Ofélia" - edição revisada e ampliada. E lendo de ponta-cabeça! Você é parente do Da Vinci?

Ela paga em espécime e segue seu caminho em passos hollywoodianos. Você põe a Ofélia embaixo do braço e sai no encalço. Já bolou uma logística infalível.

Esconde o rosto atrás da receita de trutas com alcaparras, ultrapassa pela esquerda e alcança a esquina. Apruma as calças, checa os sapatos e toma o caminho de volta. O choque será inevitável. Vai ser o cruzamento mais emocionante da sua vida.

Ela vem vindo, na mesma cadência que você já decorou. Você põe os óculos escuros e prepara-se para a abordagem. Ela se aproxima, você já se apaixonou perdidamente por aqueles olhos que mal viu, mas que enfeitam um rosto que nem Vinícius saberia descrever. É agora! Tire os óculos e mostre sua raça.

Ela desvia o olhar, tímida como devem ser as mulheres belas. Você fica parado, boquiaberto em todos os sentidos. Pensa rápido e decide que vai direto ao assunto. Vai se ajoelhar aos pés da deusa e declamar duas estrofes dos "Lusíadas", algum trecho do Bocage, e o estribilho da "Ilíada". Corre, rapaz!

Quando você se volta, ainda consegue vê-la fechando a porta do táxi. O infame motorista arranca em disparada e você percebe um sorriso naquela boca que jamais ouviu.

Era uma linda mulher...

 
 

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