O MENINO
Sonia Regina Rocha Rodrigues
A noite caíra trazendo consigo uma garoa fininha.

O menino, encolhido no banco ao lado do ponto de ônibus, escondeu o rosto entre os joelhos. Seu corpinho sacudia - se todo, de frio e de choro.

A mulher olhou pela janela e exclamou :

- Ainda está lá. No mesmo lugar.

- Que coisa mais estranha ! - respondeu o marido - Passou o dia inteiro aí ?

- Sem arredar pé. Eu não vou conseguir dormir com esta criança congelando na noite.

Assim dizendo, abriu a porta e foi ao encontro do menino, o marido em seus calcanhares:

- Cadê sua mãe ?

- Eu não sei. Ela mandou eu esperar aqui, que ela voltava logo.

- Venha para minha casa. Amanhã nós procuramos a sua mãe.

O menino não saiu do lugar.

- Você está com fome, não está ? Que tal uma sopa quente ?

A sopa decidiu a questão. O menino pôs - se de pé e, num fio de voz :

- Preciso ir ao banheiro...

- Claro, rapaz - e o homem deu - lhe a mão, dirigindo - se apressado para casa - vai tomar um banho enquanto a patroa esquenta a sopa e eu arrumo uma roupa limpa para você.

Pois o pequeno fedia. Ele e a roupa há muito que não viam água.

Depois do banho, parecia menor e mais pálido. Devorou a sopa, o pão e o leite quente, esfaimado.

- Quantos anos você tem ?

- Sete.

Parecia ter quatro.

- Aonde você mora ?

O menino disse.

- Mas isso é lá em Santos! Em plena zona! - exclamou o homem.

- Jesus! - benzeu - se a mulher.

- E sua mãe veio jogar você aqui, em Vicente de Carvalho... O que ela faz, a sua mãe ?

- Me bate. - e a criança arregalou uns olhos que eram puro medo, no rostinho esquálido.

- Vamos dormir. Temos um colchonete e você se acomoda na sala por esta noite.

No dia seguinte, toca Dona Maria a procurar a mãe do garotinho.

Atravessaram o mar de catraia, cruzaram pelo cais e adentraram pelas ruas sujas do submundo da cidade.

- É aqui - apontou o menino.

A mulher estremeceu, benzeu - se e mandou o menino chamar.

Apareceu à janela uma montanha de músculos toda tatuada, cabelos desgrenhados e peito peludo. A tremer, o garotinho escondeu - se atrás das nádegas generosas de Maria.

Uma mulher igualmente desmazelada e imunda, usando um agasalho apesar do sol quente, escancarou a porta e despejou um arrazoado de impropérios sobre quem vinha importunar o seu sossego. E arrematou :

- Leve esse moleque embora daqui que meu homem não quer saber de pirralho enchendo as picuínhas . Como é que esta porcaria me consegue voltar para casa? Some daqui, diabo!

Maria abraçou a criaturinha trêmula desfeita em lágrimas que se agarrara a ela e tratou de por - se ao largo, conhecedora que era daquele tipo de gente de pele esverdeada e pupilas em pontinhos que precisa esconder os braços em pleno sol. Quanto àquela caricatura de marinheiro Popeye, o mais prudente era guardar distância.

Quase a correr safaram - se daquele labirinto de vielas sórdidas.

Maria ligou para Manoel.

- O jeito é ir à polícia. Encontro vocês em frente à chefatura em vinte minutos.

Meia hora depois estavam em frente ao delegado.

- Pois bem, eu intimo a mãe a comparecer aqui amanhã e resolvemos o caso. Voltem amanhã com o menino.

Manoel retrucou:

- Isso é que não. O menino não é responsabilidade minha. Não é meu filho. Eu o abriguei uma noite por caridade, mas o caso agora sai das minhas mãos. Que resolva o curador de menores.

- O senhor não ficaria com ele por mais um dia?

- Nem um minuto a mais.

- Fale com o curador, ele estava aqui inda agorinha.

O curador, um homem elegante e de olhos tristes, sentou - se ao lado de Manoel :

- O senhor sabe aonde este menino vai ficar alojado?

- No juizado de menores, suponho.

- Venha, vou - lhe mostrar.

E Manoel acompanhou o curador, que o fez espiar através de portas teladas os aposentos repletos de jovens de aspectos os mais estranhos : meias na cabeça, trancinhas, carecas só pela metade, corpos cobertos de tatuagens e cicatrizes.

-Aí ficam juntos assassinos, drogados, estrupadores, gays, débeis mentais e menores abandonados. Não tenho outro local para colocar este menino. É claro, a lei não o obriga a ficar com ele nem mais um minuto.

Manoel voltou pensativo para junto da esposa, olhou para o pequeno e disse ao delegado :

- Fico com ele mas é só até amanhã.

Na tarde seguinte, compareceram perante o delegado Manoel, Maria , o garoto e a mãe, em tão lastimável estado alucinatório, após um farto coquetel de álcool com drogas, que mal sustinha -se em pé.

- Esta mulher possui várias passagens pela polícia. Prostituição, latrocínio, tráfico de drogas pesadas... No momento será recolhida a uma instituição que recupera drogados - ou tenta. Declarada incapaz de manter o filho, que será recolhido a um orfanato assim que possível. Seu Manoel... Dona Maria... estão dispensados. Caso encerrado.

Manoel ficou rodando os polegares. Falou pausadamente :

- Não é um caso... É um menino.

Maria perguntou :

- Que vai acontecer com ele ?

- Vai ficar na cela com outros menores até aparecer uma vaga na FEBEM e aí ele ficará até os dezoito anos ou até ser adotado ou tutelado por alguém.

- Não tem família ?

- Pai desconhecido. A mãe é órfã, cria da FEBEM.

- E se... - ela olhou ansiosa para o marido.

- E se nós pedirmos a tutela ? - completou Manoel.

O garotinho mantivera - se jururu a um canto, filosofando sem palavras no bem estar dos dois últimos dias, durante os quais conhecera a suprema delícia de não sentir fome nem frio e descansara o corpo das pancadas. Seu cérebro desnutrido não acompanhara o sentido das palavras mas seu instinto lhe dizia que sua vida nunca mais seria a mesma, longe da mulher que lhe dera o corpo. Pelo calor do abraço de Maria, ele compreendeu que voltaria para ela, que comeria todos os dias, que dormiria bem e até poderia, sim, ser aceito, acalentado e amado.

Então, o menino chorou.

 
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