A BELA DA NOITE
Raymundo Silveira
 
 

Estação de metrô. Esperava outro trem, devido a meio minuto de toalete. Uma mulher sorria. Não era uma qualquer. Tinha a pele nívea, de uma nórdica, mas suavemente dourada pelo sol tropical. Olhos verdes, encimados por supercílios traçados a pincel. Maçãs salientes e róseas. Lábios de Vênus. E um narizinho que não saberia definir, mas associo aos das deusas gregas, celtas, romanas, germânicas e escandinavas. Da fronte ampla e lisa, emergia uma cabeleira aloirada e sedosa, parcialmente presa na nuca. Uma Valquíria com vestígios de Iemanjá. Me olhava e sorria. Enquanto eu, perplexo, tremia. Ignorava o motivo, mas era fácil supor: Nunca uma mulher me sorriu daquele jeito. Nem em sonhos. Não sou exigente. Entre uma mulata, negra ou branca, prefiro todas. Desde que, nas veias, circulem, pelo menos, quatro pingos de estrógeno. Nenhuma, porém, jamais me fitara com tanta meiguice e carinho quanto aquela flor de Poesia.

Subimos no vagão atopetado, em extremidades opostas. Continuou sorrindo, soprando beijos e acenando até breves. Perdi-a de vista e a vista. Não vi descer. A angústia de não vê-la impedia de enxergar. Esbocei reações. Tinha de ser racional. Dominar-me. Afogar emoções e afagar a razão. Em vão. Pedia para um viciado jogar fora um quilo de cocaína pura, depois de inalar a primeira dose. Nem percebi a minha estação. Tentei diluir o abalo em idas e vindas dentro do metrô, até a última viagem. Em casa, deitei a minha frustração na cama. Amanheceu e fui trabalhar.

A manhã e a tarde passaram o dia trabalhando para mim, pois eu não fazia outra coisa a não ser esperá-las passar. O coração batia depressa. O oxigênio, depois de se difundir em cada milímetro do meu corpo, com a suavidade da melodia de uma sonata, retornava aos pulmões e era exalado muito mais puro do que havia penetrado, pois fora purificado no coração à custa dos fluidos do amor. Nada era feio. Tudo maravilhoso: pessoas, plantas, animais, objetos... Ruídos do tráfego soavam como música. Nenhuma notícia de jornal era trágica; sequer preocupante. Todas as manchetes bradavam vivas à vida.

Cheguei à estação meia hora antes e saí depois da meia-noite. Nem sinal da Valquíria. O tempo inteiro tentando inventar. Pensei em tudo. Retrato falado. Só não teria para quem exibir. Salvo se abordasse cada passageiro. Não cheguei a tanto, mas não fez muita diferença. O tempo inteiro viajando no metrô. Descendo em cada estação. Vasculhando cada vagão. Ao chegar em casa, era flácida a madrugada. Os espelhos estampavam desalento. E um enorme cansaço de mim mesmo, me impedia de dormir. Duas semanas consecutivas repeti esta loucura. Desesperancei-me, afinal.

Mais do que a esperança, perdi também a autoconfiança. Passei a duvidar de que fosse normal. Deixar-me enlouquecer por causa de um olhar. O qual talvez tivesse tido outro destino. Jamais me iludi quanto à minha aparência. Não sou tão feio. Tampouco atraente. Como fui cego! Por que uma criatura tão bela poderia se interessar por alguém como eu, num mundo repleto de homens lindos? Passei a odiar espelhos. Não via neles somente o feiúme; enxergava também a audácia... Carência de autocrítica. Coisas completamente ignoradas. Doía demais me conhecer...

Curioso é o tempo. Simultaneamente, inimigo e aliado. Enquanto nos sorve a vida pelas beiradas, repara os estragos que ela causou no nosso âmago. Nada, porém, garante a ausência de recidivas. Pouco depois de um ano, só me lembrava da Valquíria para me divertir. Rir de mim mesmo, sem o menor traço de amargura. Mais uma vez me atrasei. A porta do trem se fechou na minha cara. Então, escutei um "oi" e tive uma alucinação. Da janela traseira do último carro, um ano se atirou metrô afora e penetrou na minha alma como um bólido. A Valquíria sorria sedução e acenava carícias.

Não sei o que fiz naquele instante. Lembro vagamente de um impulso, contido pela lógica: correr atrás do trem. Dei acordo de mim, quinze minutos mais tarde. Sentado, com um celular na mão. Meia hora depois, me comunicava com a central de transportes. Só eu falava. Ninguém respondia. Todas as perguntas eram idiotas. Apenas uma parecia razoável: "perdi algo muito valioso no último vagão do trem...". E obtive o horário da próxima parada. O que eu pretendia? Também não sei! Assumo a sandice. Esperava, talvez, respirar o ar que ela respirou. Sentir o mesmo clima. Quem sabe, aspirar o aroma da sua beleza, porventura impregnado na poltrona...

A paixão é um espírito obsedante. Não nos larga nem sob o efeito de pílulas de dormir. Naquela noite me vali de desvaliuns. Ainda assim sonhei. Éramos amantes. Nos abraçávamos. Ofereceu aos meus, todos os seus lábios. Grandes, médios e pequenos. Mornos. Macios. Suculentos. Apenas se tocaram. Um hálito de cio entrava fundo pelas entranhas. Um frêmito. Os corpos se colaram bruscamente. Ímãs de carne dispostos face a face. Todos os nossos tecidos eréteis vibravam. E os meus penetraram com tanta força que a fizeram estremecer. Antes um estupro do que um ato de amor. Estupro desejado. Consentido. Implorado.

Tudo tem limites. A felicidade e a desventura. A dúvida e a fé. A esperança e a desilusão. Eu não sabia que nome tinha aquilo. Fosse qual fosse, possuía também confins. Uma fronteira que não podia ser ultrapassada impunemente. Não estava disposto, nem suportaria sofrer tanto outra vez por idêntico motivo. Tinha de encontrar alguém para dividir o encargo daquela carga. Repartir aquele pesado pesadelo. Pensei em amigos, colegas, vizinhos... Embora já soubesse quais seriam os conselhos. Transcendes à insensatez. Estás alucinado. Comportas-te como um adolescente. Transferência afetiva típica de um neurótico. Jurados unânimes. Juízes de pena máxima, em vez de conselheiros. Revelaria meu segredo a troco de nada. Ia me sentir ainda mais ridículo em troca de palavras ocas, contidas em qualquer panfleto barato de auto-ajuda. Consultei uma cartomante.

É hora de prestar um pouco mais de atenção aos seus sentimentos e valorizar a intuição. Aproveite para sair com os amigos, espairecer, curtir momentos junto de quem você ama. Permitindo-se esta leveza, certamente será uma pessoa mais feliz. Cuidar da aparência e valorizar-se são atitudes que contribuirão para fortalecer a auto-estima e aumentar a coragem e disposição para a conquista dos objetivos... Desculpe-me se sou grosseiro. Não estou interessado em conselhos. Não necessito de ajuda neste sentido. Há uma mulher. Linda, como jamais vi igual. Tenta me seduzir. Depois some misteriosamente como se fosse por acaso. Não a conheço. Preciso saber o que quer. Se me ama. Trata-se de alguém disfarçada para me enganar? Quer apenas se divertir? Como encontrá-la? Se possível, endereço ou telefone. Não peço para adivinhar o futuro, nem rever o passado. Desisto até do presente. Peço apenas um nome... Pago qualquer preço, mas não saio daqui sem um nome, porra...

Estranha essa atração entre homem e mulher! Os primeiros humanos surgiram há mais de cinqüenta mil anos. A História documentada teria nascido com os Sumérios. Há dez mil. Há quatro mil, as primeiras religiões monoteístas. Alguns séculos antes de Cristo, as especulações existenciais. A Renascença ainda estarrece. O potencial criativo dos homens parece infinito. O século XX nasceu e morreu tentando descobrir a forma e o conteúdo do inconsciente das pessoas. Ninguém foi capaz de levantar o véu desse mistério. Esse impulso esquisito impelindo macho e fêmea um para o outro. Às vezes, a ponto de causar dependência tanto quanto uma droga pesada. Paradoxo. O vazio do mundo esmagava-me o sossego. Enquanto toneladas de paixão faziam flutuar o meu desejo muito além das nuvens...

Nunca vou esquecer aquela noite. Estava sentado à mesa de um bar, próximo da estação do metrô, de costas para a entrada. Um sobressalto. Talvez o maior da minha vida. Vindas de trás de mim, duas mãos tépidas, tenras, olorosas cobriram-me os olhos. Percebi-as femininas. "Adivinha quem é". Adivinhei. Retirei suas mãos ternamente e tentei beijá-las com sofreguidão... Não permitiu. Voltei-me. Era a Valquíria. Em corpo, sangue, alma e divindade. Escutei palavras tão vulgares que me assusta ter coragem para escrevê-las aqui: "Meu senhor, me perdoe pelo amor de Deus. Pensei que fosse o Manu..."

 
 

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