OH, A DONA PIEDADE!
Lisandra Gomes Coelho
 
 

Pobre da Dona Piedade... há três horas, estirada no chão.

Todos passam por ela, todos tropeçam nela... mas ninguém se preocupa com a Dona Piedade rolando no chão. Todos estão atrasados para o trabalho. Todos precisam levar as crianças para a escola. Todos precisam abastecer o carro. E ninguém se importa com a Dona Piedade estribuchando no chão.

O Jão Carrinheiro parece ser o único que se importa com a Dona Piedade. Sempre tão boazinha, Dona Piedade sempre arruma um que-comer para o Jão Carrinheiro perto da hora do almoço. Sempre guarda os utensílios de plástico que quebram e não lhe servem mais para o Jão Carrinheiro levar para o depósito em que ele vende suas tranqueiras. Sempre tem um casaquinho para doar para o Jão Carrinheiro quando o tempo começar a mudar. Ele vem subindo a ladeira quando vê a Dona Piedade largada no chão. Sozinha. As pessoas passam ao seu lado e fingem que não a vêem. Há quem chegue mesmo a atravessar a rua ao se aproximar da Dona Piedade, para não ter que passar muito perto dela.

Ah, oh, Dona Piedade, tenha força, levante-se daí desse chão, Jão Carrinheiro já vinha dizendo, no seu jeitinho cantado e preguiçoso de falar, quase com as lágrimas lhe caindo pelo chão, ao vê-la no alto da ladeira, deitada no chão. E ia, devagarzinho, subindo a ladeira, puxando seu carrinho abarrotado de quinquilharias, lamentando-se e tentando chamar a atenção das pessoas que passavam por ele, para que alguém se prestasse a ajudar a Dona Piedade, que ele sozinho não ia saber lá muito o que fazer. Mas as pessoas não estava preocupadas em saber quem era Dona Piedade nem do que ela precisava. Na verdade, as pessoas não estavam sequer lhe ouvindo, algumas estavam nem mesmo o vendo, afinal era um mero carrinheiro. E o Jão subindo a ladeira... ah, oh, Dona Piedade... agüente firme só mais um pouquinho que já vou arrumar alguém que lhe levante... Mas a Dona Piedade estava já meio inconsciente no chão... não via Jão Carrinheiro se aproximando, não o ouvia, não fazia idéia de que ele estava chegando por ali. E as pessoas continuavam passando por Dona Piedade, cegas para o fato de ela estar estatelada no chão. E quando Jão a viu no chão: AH! OH, Dona Piedade, mas precisa levantar-se daí... e tinha mesmo medo de tentar levantá-la, pois tinha visto, em vários salvamentos na rua de pessoas acidentadas, que os bombeiros sempre tinham extremos cuidados com os feridos... e ele não sabia como Dona Piedade havia caído daquele jeito no chão, e tinha medo de complicar ainda mais sua situação... não sabia para onde correr, a quem procurar, e ficava tentando chamar a atenção das pessoas na rua, em vão. Então, Jão viu subindo a ladeira às pressas um cachorrinho sarnento, só pele e osso, e uns moleques correndo atrás dele de pedra na mão. Tentavam acertar o cachorrinho, mas Deus é justo e os moleques tinham péssima pontaria. Jão Carrinheiro se enfureceu: o que aquele inofensivo cão podia ter feito àquelas pestes para o atacarem daquele jeito covarde? De cabelo desgrenhado, com os dentes faltosos, Jão pulou diante dos moleques, com sua cara de fúria:

- Sumam daqui, suas pestes, vai tacar pedra na mãe!!

E, assustados com a visão de Jão Carrinheiro, os moleques tocaram a correr ladeira abaixo, esquecendo do cachorro sarnento e faminto.

Jão atraiu o cão para junto de seu carrinho, do qual, de um pequeno saco plástico, tirou um resto de sanduíche de presunto com queijo amanhecido e amassado, e deu para o pobre. E o cão fartou-se daqueles restos de lanche como se não comesse há trinta anos, que era o tempo que fazia desde que Jão tivera sua última refeição de verdade.

Dona Piedade percebeu a respiração voltando aos poucos e os batimentos cardíacos se normalizando. Já não estava mais inconsciente, talvez. Jão Carrinheiro, tão entretido com o cãozinho, que já lhe fazia até festinha, se esqueceu dela quase que por completo. Mas agora também ela já não precisava mais de sua atenção nem de sua preocupação, e sentindo as pernas um pouco firmes, arriscou-se a levantar-se dos chão aos pouquinhos, e sentou-se, encostada no muro da casa diante da qual caíra. Foi quando desceu a ladeira, a 120 quilômetros por hora, uma Mercedes preta, de alguém que estava atrasado levando a mulher para as compras e indo, em seguida, para o trabalho. A velocidade era tanta que o sujeito não viu uma criança que correra para o meio da rua para pegar sua bola. A mãe, da calçada, só teve tempo de gritar FELIIIIIIIIIIIIIPE, mas o Felipe já estava embaixo da roda da Mercedes, que só teve tempo de continuar a correr. A mulher ainda avisou - meu querido, acho que você atropelou um menino, mas ele estava com pressa demais para voltar e ver se havia mesmo acertado alguém e se podia fazer algo por essa pessoa.

- Além do mais, se eu tiver acertado alguém sabes que o carro vai ser guinchado no ato e minha carteira apreendida. Não vamos voltar. Ore a Deus que esteja tudo bem e amém.

E Dona Piedade, encostada no muro, caiu tombada para a esquerda, morta, no chão.

 
 

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