MEIRE
Beto Muniz
 
 

Parei de fumar e engordei doze quilos em três meses. Lógico que minha índole não permite discriminar quem quer que seja pelo excesso de massa corporal na linha de cintura, mas incomodou-me os quilos extras e a perda de mobilidade na simples tarefa de amarrar cadarços. Eu estava de mudança para assumir a filial em fase de inauguração e se quisesse causar boa impressão entre os comandados deveria cuidar também da silhueta. Na área de marketing a imagem é tudo! De repente me vi obrigado a alterar a rotina gastronômica e controlar o cardápio optando por rúculas, cenouras, brócolis e xuxu em detrimento às picanhas e talharins de antes. Isso deprimiu meu ânimo, principalmente porque sou um avaro consumidor de bolos, doces e sorvetes. Convenhamos, não tem coisa melhor no verão que parar diante da kombi garapeira e pedir um caldo de cana com limão... Opa, tem sim! Pedir logo dois caldos de cana, um com limão e outro com abacaxi. Bastante gelo!

A verdade é que após constatar o crescimento lateral e optar pelo cardápio vegetariano, passei a freqüentar o setor de frutas legumes e verduras dos hipermercados, abandonando a contragosto as minhas gôndolas preferenciais, aquelas onde os letreiros informam refrigerantes, cervejas, chocolates, padarias e açougues. Padaria e sorveteria estavam de forma deprimente longe do meu roteiro. Mudei para perto da nova filial dois dias antes da apresentação no escritório, durante as obras eu moraria num flat, a melhor invenção depois do hotel. Sem nada para fazer além de arrumar as roupas no armário, na tarde seguinte fui ao mercado abastecer minha nova geladeira. Foi na banca das abobrinhas que encontrei a Meire. Magra, cabelos tingidos cor de palha, pele de uma brancura perolizada lembrando barriga de lagartixa. Tive a impressão que se tocasse em seu rosto as pontas dos meus dedos congelariam. Senti asco, mas os segundos em que fiquei imóvel fitando seu rosto passaram impressão contrária. Recebi um sorriso de dentes amarelados - combinavam com a cor dos cabelos - pretensiosamente simpático. Não era. Só aumentou a repugnância que despertou as taturanas de fogo no estômago (preciso cuidar dessa gastrite - pensei), mas sou civilizado e esbocei um sorriso qualquer antes de cortar relações visuais virando as costas para ela e rumando em direção ao caixa. Meire me seguiu pelos corredores, entrou na fila ao lado e de lá torpedeava olhares, esgares e charmes de jibóia. Educado e tentando parecer gentil, considerei sair da minha fila para esbofetear a aberração.

Não era feia. Gordinha, quilos extras bem distribuídos, bonita. Olhos claros, rosto discreto, dentes perfeitos eu sabia, mas teimava em vê-la disforme por antipatia imediata. Queria que ela fosse torta e defeituosa porque aconteceu aquela coisa estranha de não bater o santo... Pá! PUM! Via de mão única pelo jeito, meu santo não bateu com o dela, mas o santo dela estava irremediavelmente encantado pelo meu santo e pelo corpo em que ele habitava. Mordi uma folha de alface deixando propositadamente um naco cobrindo o dente da frente e lhe sorri. Não funcionou, aliás, minhas intenções naquele início de noite definitivamente estavam funcionando contrariamente aos meus propósitos. Ela veio imprudentemente gentil informar sobre a hortaliça no meu dente. E achou que o pseudo-favor era motivo para perguntar meu nome, e retribuir informando nome e sobrenome... Que coincidência!!! Era ela, a secretária financeira escolhida pela empresa e que eu deveria conhecer na reunião da manhã seguinte. Omiti a coincidência já imaginando como seria meu ambiente de trabalho dividindo horas, minutos e segundos intermináveis com o ser úmido e grudento. Ela não parava de falar. Disse que era vegetariana encarando-me como se eu fosse uma beterraba cozida. As onomatopéias saiam dos meus lábios com significados nada dignos e quando eu quis mandá-la colher nabos em outra horta, lembrei das regras contratuais que proibiam relacionamentos entre funcionários da mesma filial com cargos de confiança. Mostrei meu melhor sorriso sem alface.

Quando quero, mesmo estando acima do peso, tenho argumentos que permitem finalizar com o tradicional: "Uma salada com a sua chicória ou com os meus tomates?". Beijei o mínimo possível. Falei de sentimentos acariciando seu ombro. Trocamos expectativas amorosas, fechei os olhos. Abri um vinho e repousei a mão em sua perna, suspiramos ao mesmo tempo. Calculista nem tencionei cama no primeiro encontro. Fui ao mesmo tempo poético e ousado, romântico e tarado. Antes da refeição jurei encantamentos, durante cogitei prazeres e após as peras e ameixas insinuei a palavra compromisso - acho que falei em alianças enquanto ela me chamava um táxi. O último sacrifício da noite foi um beijo longo e macio. Voltei para casa e dormi como um anjo. Pela manhã lavei meus pecados, vesti o melhor terno e calculei pequeno atraso para a reunião. Oh! Que surpresa!! "Mas eu disse meu nome, acho que falei até sobre minha profissão". Pedi desculpas confessando uma distração no momento das apresentações, constrangido com o flagrante naco de alface nos dentes. Ela aceitou as desculpas e eu lamentei sutilmente a impossibilidade em levar adiante o relacionamento, citando as regras contratuais. Ela aceitou o sacrifício e recusou o cargo. Na semana seguinte, esqueci a tal da índole citada no início desse texto e sem dó nem piedade, por telefone, informei que não era bem aquilo que eu estava planejando para minha vida; que preferia conservar a amizade; que ela merecia coisa melhor e... Quando ela começou a chorar do outro lado da linha eu desliguei. Para não receber ligações de volta saí mais cedo do trabalho. A caminho de casa usei a balança da farmácia, eu tinha perdido quatro quilos. Comprei um maço de acelgas para comemorar. Temperei com sal e azeite. Não gosto de vinagre que, não sei por que, me faz lembrar cigarros.

 
 

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