NO DIA QUE EU VIM-ME EMBORA
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Bárbara Helena
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"...Não
teve nada de mais" Apanhou a bolsa e saiu batendo a porta. Não que significasse grande coisa, a mãe era surda como a própria, apenas um gesto de rebeldia amarga. Necessidade de extravasar o lago que inundava o peito, impedindo a respiração. Piedade contou as moedas do ônibus. Há momentos cruciais em que os gestos simples tomam a frente. Vi que eu não sabia nada.. nem de porque eu ia indo, nem dos sonhos que eu sonhava... sabia apenas que a mala, de couro que eu carregava, embora estando forrada, fedia, cheirava mal Caetano ao longe na esquina da memória. O ônibus chegou, meio vazio, um gordo suando, a magra que lia o mesmo livro há semanas, três mulheres altas. Sentou-se e escondeu as mãos, hábito de menina. Não roa as unhas, desgraçada, quer ficar como estas mulheres vadias? Nunca vai arrumar marido desta maneira... Não ia mesmo, mamãe. Você estava certa. Piedade abriu a bolsa, se olhou no espelho. O rosto estava branco, determinado. Do lado de fora o calor derretia as frutas na feira. Ele estaria lá? Pensava entre bananas, mangas e biscoitos, conservando o coração. Não olhe para dentro. Deixe a vida te levar Não importava para onde olhasse era a mesma paisagem desolada. Seria amor ou covardia? Jogue fora o supérfluo, minha linda e acredite no meu amor. Pai nosso que estais no céu, Ave Maria, mãe de Deus me ajude Você sempre foi assim, esquisita, não sabe rezar. E com este nome... Piedade.. tem pena de mim, piedade... As vozes cruéis. Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Entendeu? Sim, meu amor, sim, Deus foi sempre muito complicado para mim. Puxa a corda e o ônibus para. O coração também. Depois recomeça devagar. Você pensa que não vai conseguir, suas pernas bambeiam, lembra da mãe em casa imersa na escuridão. Pecadora Madalena, vejo seu argueiro contra minha trave, quero apedrejar seu corpo, te crucificar. Você suspira de prazer. O errado tem delícias. Entra na Igreja pela última vez. Olha o Cristo e repete baixinho: Perdão. Mas é mentira, não sente remorso, não quer parar, quer continuar. Ele levanta a cortina do altar e vem em sua direção. O coração para de novo e recomeça. Estou me lixando, meu amor, estou me lixando. Seu olhar me despe ali mesmo, querido tarado. Por que não veio de batina? Ele sorri pra mim: Maluquinha... Maluqunha sim. Nunca mais Piedade. O ônibus chegou. Mamãe, mamãe não chore, a vida é assim mesmo E eu fui embora. |