EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
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Vera do Val
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Viram - se pela primeira vez em uma tarde ventosa de agosto, ambos distraídos, passeando pela grande livraria. Ela procurava um Guimarães Rosa, ele sonhava filosofias. Como em toda boa historia de amor ela deixou cair um livro e ele recolheu. Era um vetusto Machado de Assis, que quase gemeu quando chegou ao chão. Ela sorriu se desculpando, ele sorriu gentil e pressuroso, e dali para o café mais próximo não demorou muito. Olhos nos olhos discutiram literatura e gabaram -se de suas bibliotecas. Beberam da boca um do outro todos os clássicos, ela confessou a paixão pelos modernistas, ele rimou os parnasianos. De reconhecimento em reconhecimento a noite chegou e ficaram surpresos. E foi assim por muitos dias. Sem pressa percorreram todos os sebos, todos os livros. Os olhos dela brilhavam quando ele chegava e escureciam quando ele partia. Depois desse alvoroço todo, ele já não se continha. Uma noite convidou-a para jantar, dizia-se um grande cozinheiro. Ela aceitou, queria conhecer a biblioteca dele. Na hora marcada chegou, vestida de vermelho, e ele, aflito, a conduziu aos livros. E foi ali, depois de um pouco de vinho, que seus corpos se tocaram e ela abriu-se toda. Embeberam-se dos cheiros do desejo e dos velhos livros. Entre um gemido e outro ele lhe cantou pelo corpo todos os versos e ela derramou- se em todas as prosas. Misturaram livros e humores mútuos e quando o dia chegou estavam nús e adormecidos tendo Proust como travesseiro. Só lhes restava juntar os livros, os dela e os dele em um conluio feliz. Ela os trouxe em grandes caixas e eles esparramaram se em suas vidas. O tempo foi passando sem pressa enquanto arrumavam as estantes, enormes, ele segurava a escada e ela adejava, no alto, livro a livro, lado a lado. Os olhos dela não mais escureciam e as mãos dele a faziam música. Muitas noites abandonavam a cama e iam se amar no tapete da biblioteca, observados por todos aqueles autores, antigos e sisudos, que coravam com o estertor deles. Depois de alguns anos , quando a biblioteca, agora única, já estava toda organizada, mapeada e catalogada, que ambos já haviam se encharcado com tudo que continha os livros um do outro, uma bela manhã ela vestiu-se de vermelho, pegou a bolsa e partiu. Ele, distraído em seus pensamentos, só acenou pela janela. Ela acabou por casar-se com um dono de supermercados, ele debruçou- se sobre um tratado de filosofia. |