AS CADEIRAS VAZIAS DA SALA DE JANTAR
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Thaty Marcondes
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Está quase na hora de acender as velas para o "shabat". A mesa está posta. Vejo pela enorme vidraça da sala do apartamento o sol se pondo na linha do horizonte da cidade. São Paulo conturbada. São Paulo transitada. São Paulo megalópole repleta de licantrópicos e Lestats decadentemente elegantes. São Paulo megafone dos barulhos do mundo. Todos os mundos se encontram aqui. Em cada esquina vários pedaços dele. Da janela não vejo, mas sinto e sei da presença da avenida São João, do Minhocão, da Avenida Angélica. Do outro lado do viaduto que destruiu valores dos prédios elegantes das ruas nobres das marquesas e viscondes, condes e princesas, as mansões erigidas umas sobre as outras em prédios exuberantes com suas portarias em mármore escarrado e sofás rasgados do que um dia já foi couro. O cheiro putrefato dos animais que lhes renderam peles em sacrifício, nessa ara onde a fina-flor da society - despregando odores brancos de pó - senta a bunda em dias de festa ou em esperas de brilhantes multifacetados que servem para pedidos de sociedades anônimas com filhos em produção limitada. Hoje a zircônia, as flores de plástico ou de seda made in Taiwan. Os tapetes Tabacow substituem os persas leiloados pra pagar as dívidas de condomínio, a reforma da privada do vizinho, a retirada dos balanços e gangorras. Agora mais carros e menos crianças. Cresceram e foram pra Nova York. Lá o shabat já começou faz horas. Lusco-fusco saudosista. Identifico o Play-center. Roda gigante, não mais o gira-gira no pátio. Avisto logo abaixo, na divisa do muro, uma escola que se esvazia. Gritos de crianças mal nutridas, mal vestidas, mal educadas, mal versadas, mal amadas. Na esquina oposta o pronto socorro, ao lado do posto de saúde, o "postinho" do bairro que um dia virou SUS do quibe político. Continua a mesma droga, mas agora não é mais do califa: o rei foi deposto. E mesmo assim as pessoas continuam chegando aos pedaços, às dúzias; morrendo à míngua, aos poucos; nos corredores, por falta de leito, por falta de médico, por falta de gente especializada, por excesso de gente desorientada, porque a cidade é um enxame de gente desavisada, e nessas paredes ecoam em coro o grito dos desesperados: ó xenti, me traga um doto, por amor de Deus! Não! Eu não conheço essas cadeiras. Mas acho que podemos nos sentar nelas. Lá
longe o trem. Que trem é esse? É trem de gente? Também
traz gado e leva carga. O sol se enrubesce. Vermelho como em Praga. Vai
ver é comuna, o desgraçado. Filho da puta me cega. As pombas cagam no terraço da frente do apartamento. Vou lá ver não, pois lá já é shabat, tudo escuro. O sol morrendo na parte de trás a me doer as vistas, me secando a boca, me fervendo lembranças. Tarde quente. Pesa o ar poluído dessa cidade caótica. Amo São Paulo. Essa balbúrdia, essa torre de Babel. Putas e viados na pensão do lado, madames quatrocentésimas atravessando a rua, padaria com velas de última hora (a gente cola com pingo de cera derretida no castiçal cheio de braços), farmácia pro pico, boteco pra cachaça, até pizzaria com sabor quase de graça. Só uma pontinha desse sol vermelho, encabulado, agora rubro de vergonha rubi. O cheiro das cerejas. Pô, ninguém vai acender essas velas? É shabat, gente! Mas... Quem é essa gente? O que é que eles estão fazendo nessa casa? Aqui é o apartamento da minha tia, da família dela. E é shabat, o marido dela gosta das velas acesas nesse dia. Onde ele está? Onde estão todos? Alguém tem que acender as velas. Ninguém me vê, ninguém me ouve. Todos passam por mim, através de mim, como se eu não existisse, como se eu não estivesse aqui no meio da sala, esperando a hora e as luzes das velas. Uma fome do cão. Todos apressados, Mac-famintas mãos, e nada do jantar, nada de acenderem as velas. Pra onde foram todos? Por que ninguém vem? Estão todos surdos? Onde se enfiaram? Agora noto que é o mesmo apartamento, mas é outra gente, não mais meu lar. Onde estão todos? Onde está minha família? Onde se meteram minhas lembranças que agora me escapam pelos vãos dos dedos? É shabat e ninguém acendeu as velas, e esse escuro agora é quase breu, enquanto me faço penumbra em meio às sombras de um passado de festa. Apenas eu, pateticamente fincada no meio da saudade dos que se foram e por isso não vieram. E eu sou nada. Presença etérea, sem vida pra acender as velas. Sinto tanta falta de todos. Falta desse lugar onde já vivi tanta vida, com tanta gente que não está mais viva. Não veio ninguém. Nenhum em seu lugar à mesa posta com tanto gosto pela dona da casa, que também faltou. Ninguém. Um buraco dentro de mim sangra lágrimas e eu me afogo no meio da sala, no meio do nada. Aqui ninguém se importa se é shabat. Na sala da minha memória apenas eu... Na casa nova de meu primo, no interior bragantino, a solidão da mobília das festas. E as cadeiras vazias da sala de jantar. |