O MUSEU DO NUNCA MAIS
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Tatiana Alves
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Sempre fora fascinada por museus. Templo das musas, segundo indicava a etimologia. Outrora, um santuário consagrado às musas, e atualmente um local destinado a preservar e expor obras de arte. Realmente, lá figuravam algumas das grandes pérolas da genialidade humana, provas de que o homem carrega dentro de si a centelha divina. Lugar onde os tempos se cruzavam, e no qual o passado tornava-se eterno, imortalizado. Estudara Arqueologia para melhor vislumbrar o legado que os antigos nos haviam deixado, mas de fato se encontrara ao visitar museus. Neles, sentia-se em casa, no reconforto do retorno ao lar, como o viajante que calça os velhos e surrados chinelos, e descobre-se mais feliz do que jamais fora nos mais majestosos hotéis pelo mundo. Passeava pelas pinturas, esculturas, gravuras, moedas, como se reencontrasse velhos conhecidos, testemunhos de épocas pregressas, relíquias do nunca mais. Tentava apreender, pela obra, a mente do artista, ora em êxtase, ora na angústia, tributo a ser pago por aqueles que detêm o poder demiúrgico. A criatividade traz consigo o peso da sensibilidade, e a capacidade de perceber a essência humana é, ironicamente, o que incompatibiliza o artista com a humanidade. Ao conhecer a fundo as mazelas desta, ele refugia-se em sua solidão, e o que muitos julgam excentricidade nada mais é do que um profundo desgosto pela misérrima condição. Sabe que a solidão faz parte de sua essência, e que negar isso somente leva a uma angústia ainda maior. Amava os museus pelo que neles havia de grandioso, e adentrava cada um com a solenidade da primeira vez. Sua atitude denotava uma quase reverência, um reconhecimento diante de um mistério inescrutável, apenas percebido pelo deslumbramento denunciado no olhar. Talvez devesse mesmo pertencer a um museu, escarnecia o noivo, de resto um bruto que jamais a conhecera de fato. Não era propriamente antiquada, mas acreditava em coisas que eram motivo de chacota junto a seus pares. Se não possuía afinidades com seu mundo, só podia pertencer ao passado, julgavam aqueles que não conseguiam vislumbrar o que havia de visionário em seu interior. Definitivamente, não era uma moderninha, e era mais fácil rotulá-la de antiquada, como se fosse mais uma das múmias que tanto estudara, do que perder tempo tentando analisar a existência. Curavam suas carências com vodka e musas de carne fresca, mas ela não queria nada menos do que deuses e ambrosia, e quem nunca pisou no Olimpo jamais compreenderia tal anseio. Era uma barroca em tempos pós-modernos, e seus conflitos incomodavam porque punham em xeque as certezas invioláveis da humanidade. Uma vez ouviu do noivo a crítica de que "pensava demais", defeito grave, na opinião daquele. E ao olhar aquela aliança, símbolo de união e cumplicidade, viu que o que figurava em seu dedo era um grilhão solitário, não por acaso enfiado no dedo anular. De todos os museus que conhecera, um a havia impressionado de modo particular: tratava-se do museu de cera de Madame Tussaud, em Londres. A réplica de personagens históricos e atores famosos era tão perfeita que por vezes tinha a impressão, ao mirar os verdadeiros, que estes, sim, eram a cópia, tamanha a perfeição das estátuas. Era incrível que algo tão viscoso pudesse resultar em simulacro de gente. Mas, afinal, devemos mesmo derivar do barro, riu ela, ao relembrar as aulas de religião. Decidira, então, tornar-se uma ceroplasta, outra insanidade, na opinião daquele com quem, um dia, pensara em se casar. Passava noites em claro, aperfeiçoando-se na arte que descobrira tardiamente e tencionava recuperar o tempo perdido através da dedicação. Possuía talento, segundo o professor, e, sobretudo, manifestava um respeito para com as obras como se manipulasse algum tipo de relíquia, e que qualquer descuido soasse como um sacrilégio. Não profanaria jamais o canal que a ligava à divindade, e sentia-se uma semideusa ao dar à cera contornos e forma humanos. Muitas de suas estátuas possuíam feições mais expressivas do que algumas das pessoas com quem se relacionava. E essa inversão, que tornava os replicantes mais humanos do que os próprios humanos, que às vezes pareciam mesmo declinar da superioridade de que eram dotados, instigava-a. Aprendeu
a trabalhar à noite, hora em que a cera tornava-se mais maleável,
e em que não seria interrompida por situações mundanas,
como agentes de telemarketing empurrando produtos que jamais usaria. Como
num ritual, foi aos poucos descobrindo os melhores momentos para cada
etapa do processo criativo, e adaptando seus horários à
nova atividade. Em pouco tempo, estava tão habituada a essa rotina
que sua vida comum - amigos, boate, bares - parecia-lhe tão anacrônica
quanto ela aos olhos dos outros. Nada mais importava. Encontrara-se, e
restavam poucas pendências a serem resolvidas antes que desse adeus
à chamada vida cotidiana. Descobrira a porta para um novo mundo.
Olhara pelo buraco da fechadura e encantara-se de tal forma com o que
vira que o retorno era impossível. De fato, pela primeira vez na
vida sentia-se realmente feliz. Restavam somente alguns ajustes. Iria
para Londres, para aperfeiçoar sua técnica. O professor
dissera-lhe que ela era dotada de estilo próprio, e que ele nada
mais lhe tinha a ensinar. Chegara a hora de seu vôo solo. A campainha tocou, e o noivo surgiu, um tanto constrangido, quando ela abriu a porta. Como se no íntimo, com toda a sua insensibilidade, ele tivesse pressentido o fim. Deu-lhe um tímido sorriso, tão diferente do executivo poderoso e agressivo que ele costumava encarnar. Ela deu-lhe as costas para voltar às esculturas, um tanto contrafeita com a impertinência da interrupção. Ele então a puxou para si, num ímpeto que destoava de sua frieza habitual. Sempre tão contido, o senhor-bem-sucedido parecia agora um indefeso garotinho. Quantas foram as vezes em que ela tentara conversar, e ele a demovera, pois não tinha tempo, porque ela pensava demais, porque ela era neurótica... Agora seria uma conversa só. Pensando bem, seria um comunicado, seco e frio, como ele sempre desejara que ela fosse. Devia muito a ele. Ao tentar modificar seus traços mais marcantes, ele acabara acentuando-os. Na ânsia de defender o que trazia de mais verdadeiro em seu interior, ela chegara ao âmago de si mesma, e essa era uma viagem de mão-única. Disse tudo o que queria de uma vez, numa lufada, como se tivesse ensaiado. Ele virou-se para ir embora, deixando-a sem resposta, como de costume. Sabia o quanto isso a irritava, mas nunca se importara de fato com o que ela sentia. Queria-a porque a amava, como se ela fosse o objeto necessário à conjugação do verbo. Queria-a porque havia projetado uma vida com ela, e não admitia que nada interferisse em seus planos. No fundo, até em seu amor ele era egocêntrico e objetivo, com suas metas e estratégias bem traçadas. E agora que ela ousara desmanchar-lhe as diretrizes, não valia a pena ouvi-la. Subitamente, voltou. Sabia como magoá-la, e percebera que não haveria palavras capazes de fazê-lo. Partiu, então, na direção daquilo que ela mais amava: suas obras. Como um tufão desorientado, destruiu as que estavam ao seu alcance, e tomou a direção da porta. Ela seguiu-o, furiosa, até o jardim que rodeava a casa. Começou a esmurrá-lo, gritando, desesperada, até que ele a segurou com uma força de que ela não o sabia capaz. Foi então que ele a soltou, horrorizado, e começou a se afastar lentamente. Ela, sem entender, olhou as próprias mãos, e percebeu o quanto a aliança ficara frouxa em seu dedo. Assombrada, constatou que seus dedos começavam a derreter. Como ela havia imaginado, aquela era mesmo uma viagem sem volta. |