ALLEGRO MISANTROPO XV
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Sérgio Galli
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Primavera de 2005 |
(Ao
som do Oratório de Natal, de J. S. Bach,
de After de Rain, de John Coltrane e de Palhaço, de Egberto Gismonti) É Natal. Mais um. Um ano cheio de efeméride que chaga ao fim. Sessenta anos da bomba atômica norte-americana que explodiu Hiroshima e Nagasaki. Sessenta do fim da Segunda Guerra Mundial, a maior carnificina, dentre tantas outras na sua História, perpetratada pela espécie mais carniceira e predadora, o homo dito sapiens, que, a partir daí começou a ser tomado pelo homo demens. Há sessenta anos acabava a Humanidade. Cem anos que Albert Einstein publicou a Teoria da Relatividade. Cem anos do massacre de trabalhadores russos em Moscou. Vinte anos da morte de Tancredo Neves. Setenta e cinco anos da morte do poeta russo Vladimir Maiakoviski. Cinqüenta anos da morte de Thomas Mann. Cinqüenta anos do nascimento deste que vos escreve. Trinta anos do assassinato de Vladimir Herzog. Vinte e cinco anos do assassinato de John Lennon. Noventa anos do nascimento de Billie Holiday. Quatrocentos anos de Dom Quixote de la Mancha, o cavaleiro da triste figura. Neste ano morreu o avô paterno de meus filhos. 2005 um ano para esquecer. Para não esquecer, este foi o ano em que o rei ficou nu. A crise política estourou no colo do presidente e de seu partido. Seja "mensalão", "semanão", ou o nome que se dê, a verdade é que a compra de deputados existiu. O poder pelo poder. Nunca se viu tanta arrogância, empáfia, desfaçatez, cinismo, mentiras e mais mentiras. Os fatos desmentem, mas os culpados insistem em negar. Ninguém mais se constrange, sente vergonha.Um escândalo, ainda que menor, pois encobre o verdadeiro escândalo. O presidente, o governo e até a oposição se jactam de que a economia vai "de vento em popa" (sic). Para quem, cara-pálida? Nós, os trouxas do andar de baixo, pagamos quase um trilhão de reais de juros da dívida este ano. Os acionistas do Citibank sorriem ("sorria, você está sendo filmado", diz o cartaz no banco). Os principais bancos brasileiros batem recorde de lucros, mês a mês. Em quanto isso, a patuléia fica com as migalhas do banquete: bolsa-família, fome-zero, etc. Por outro lado, a renda média do trabalhador brasileiro caiu, entre 1995 e 2005, trinta e um por cento. Esse escândalo escabroso ninguém fica indignado, nem a mídia tão feroz contra o governo, afinal, ela também tem seu quinhão nesse banquete. Tudo pelo superávit primário, o único objetivo do governo anterior, do atual e do próximo. É Natal. O filósofo francês André Comte-Sponville tem uma observação deveras interessante. Há até pouco tempo aos domingos pela manhã, as pessoas iam à missa para refletir, meditar, religar. Hoje, vão ao supermercado, aos centros comerciais. Isso vindo de um ateu, como eu. Na verdade ele apenas constata o lado mais visível do capitalismo. Afinal, nesse sistema, tudo é mercadoria. O único valor é o valor de troca, como diria o velho em bom Karl Marx. Dele mesmo, "o capitalismo não tem coração". Ou na frase síntese do geógrafo Milton Santos, "a tirania do dinheiro e da informação". É Natal. Celebração das compras e não mais do nascimento do filho de Deus. É Natal. É capitalismo. É também a vez da tirania das marcas. Capitalismo é produção de riqueza (para pouquíssimos) e a produção de destruição e perversão. Quem disse que não há mais trabalho escravo? Talvez nunca a tenha havido tanta escravidão quanto hoje. Claro, a contrapartida da mais-valia é um parco salário. Mas até isso pode ser destruído. As marcas, seja de um fabricante de calçados e roupas esportivas, de refrigerante, de comida rápida, as sete irmãs do petróleo, grande rede varejistas, montadoras, e roupas, vão até o quarto mundo, China, Vietnã, Filipinas, Guatemala, enfim, e com a conivência e anuência dos governos locais, contratam principalmente mulheres e crianças para trabalharem até 12, 14 horas e fabricarem seus produtos a preço vil, sem garantia de empregos, plano previdenciário, de saúde, e outros benefícios. Os produtos chegam ao mundo maravilhoso dos centros comerciais e são vendidos a preços estratosféricos para serem comprados por hedonistas consumidores. É Natal. Pois nada de novo no front. Isto é capitalismo que reifica ou coisifica tudo. Não esquecer, tudo é mercadoria, ou seja, nossa força de trabalho trocamos por um salário. Quer dizer, não somos mais pessoas e sim coisas. Um mero número de alguma estatística. Georg Lukács, citado por Marshal Berman em "Aventuras no marxismo" explica melhor: "O trabalhador deve ser como uma peça mecânica incorporada a um sistema mecânico. O sistema preexiste ao trabalhador e é auto-suficiente, funciona independente do trabalhador, e o trabalhador tem de amoldar-se às suas leis quer goste ou não [...] Aqui, também, a personalidade nada pode fazer senão assistir, impotente, enquanto sua própria existência é reduzida a uma partícula isolada num sistema alheio". A alienação do trabalho tão bem definida por Karl. Não há futuro e nem esperança no capitalismo. Tudo foi reduzido a comprar e vender, tão bem explicitado nesta época. Mais, o capitalista quer apenar fazer mais e melhor lucro, acumular capital. O resto, é detalhe. Aí entra a publicidade, a indústria do entretenimento e mergulhamos no abismo da sociedade do espetáculo. É Natal. Já que tudo está à venda, nada melhor do que a propagando para tudo comprar, inclusive mentes e corações. Ilusões, desejos, sentimentos, emoções, frustrações, alegrias, tristezas, decepções, conquistas, amores, amizades, coragem, covardia, virtudes, moral, ética, honra, dignidade, altivez, orgulho, rebeldia, revolta, boas e más intenções, indignação, resignação violência, paz... ad infinitum. Tudo tudo tudo foi vorazmente devorado, regurgitado, assimilado, comprado, violentado, absorvido, incorporado, deglutido, ruminado pela publicidade. Pôster de Che Guevara, a quinta sinfonia do Beethoven de fundo, ou "Revolution", dos Beatles, e tantos e tantos exemplos que seria enfadonho enumera-los nesta curta crônica. É Natal. Os CEOs das grandes marcas transacionais tem renda superior ao produto interno bruto de muitos países. Enquanto isso, seis milhões de crianças morrem por ano de fome. Isto é capitalismo. Aí, para citar um exemplo, o Bill Gates, dono da Microsoft, tem um surto de má-consciência e resolve distribuir algumas milhas de sua incalculável fortuna para miseráveis aidéticos da África subsaariana. Que belo gesto? Tenho vontade de vomitar. É Natal. No templo capitalista, os centros comerciais, (xópins), o orgia das compras é celebrado num ritual quase pagão, quase cristão, ecumênico, pois no capitalismo tudo é mercadoria, até os mitos, as religiões. Nesse sentido, os termos globalização ou mundialização são equivocados. Na verdade, o melhor é monetarização. O valor monetário é o que impera. Pois com a monetarização do planeta e da vida, a partir do final da Segunda Guerra Mundial - relembremos da extinção da humanidade e do homo sapiens - o Poder começou a mudar de mãos (ou de patas). Hoje em dia, o poder de fato não mais pertence aos parlamentares, aos primeiros-ministros, aos presidentes, aos reis que ainda restam, aos juízes. As grandes corporações comandadas por seus CEOs são os verdadeiros senhores do universo. O público está a serviço do privado. A privacidade foi invadida pelo público. A coisificação e a monetarização, o ápice e a decadência do capitalismo. E o velho e bom Karl já antecipava o que hoje se chama de globalização. Permitam-me mais uma citação, desta vez do Manifesto Comunista: "A necessidade de expandir o mercado constantemente faz a burguesia se espalhar por toda a superfície do globo. Ela tem de se aninhar em toda parte, tem de se instalar em toda parte, tem de estabelecer conexões em toda parte". Mais adiante: "Os preços baixos de suas mercadorias são a artilharia pesada com que [a burguesia] põe abaixo todas as muralhas chinesas, com que força o ódio tremendamente obstinado dos bárbaros pelos estrangeiros a capitular. Ela obriga as nações, sob pena de extinção, a adotar o modo de produção burguês: obriga-as a introduzir a chamada civilização em seu meio, isto é, tornarem-se burguesas também. Em resumo, cria um mundo à sua própria imagem". Finalmente uma observação mais do que nunca pertinente e atual: "A burguesia despiu o halo de todas as profissões até então honradas e encaradas com reverente admiração. Transformou o médico, o advogado, o sacerdote, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados". É Natal. Os bárbaros do século XXI surgem sobre cadáveres insepultos na telinha do computador, na telinha da tv, noticiário da CNN ou da Fox News (ou da Globo). Irrompem vociferantes banhados de sangue no filme da Universal, da Warner, da Dream Works, da Disney. Explodem na propagando de bebida alcoólica, de automóvel, da grife de roupa, do tênis, do sabonete, da loja de varejo, do telefone portátil, do processador, do cigarro, do refrigerante. Os bárbaros da século XXI cumprem o seu papel civilizatório. É Natal. Tempo para escutar Bach.
Sugestão
de leitura: "O capitalismo é moral?", André Compte-Sponville,
Martins Fontes, 2005. |