TODA TUA
Luís Valise
 
 

O congestionamento era apenas uma parte do problema. As buzinas, o calor e o tamanco novo machucando o dedinho deixavam-na com o humor de um rotweiller. Queria chegar logo no Banco, contar suas dificuldades para o gerente, implorar mais uma prorrogação no vencimento do papagaio, não importavam os juros, tinha que dar um jeito. Sabia que o gerente faria cara feia, ameaçaria mandar o título a cartório, e ela teria que fazer cara de choro. Precisava mais sessenta dias de prazo. Em casa, a geladeira estava quase vazia, o pagamento da menina que cuidava de seu filho estava atrasado, e seu nome constava no balancete do mês como "Condôminos em Atraso". Merda de vida, merda de vida! Mas as coisas sempre podem piorar.

Percebeu que um tipo forçava passagem aos poucos. Com o ônibus parado, queria ir aonde? Ela adivinhou. Ele veio se chegando, até ficar atrás dela. Encostou de leve. Ela esperou até sentir o espeto, aí desceu do tamanco:

- Por quê você não vai encostar na mamãezinha?

- Como?

- Por quê você não vai encoxar a puta que te pariu?

- Não é nada disso, senhora...

- Sai de trás de mim!

- Mas...

- SAI!! O cara foi saindo, saindo, acabou saindo do ônibus. Nojento! Que dia!

Entrar no Banco foi um alívio, adorava ar-condicionado. O gerente atendia outra pessoa. Esperou no sofá, com água gelada e cafezinho. Ao ser chamada, caminhou tentando aparentar despreocupação. Sentou, sorriu, procurou ser simpática, e começou a desfiar seu calvário de dificuldades. Até que o gerente começou a olhar suas pernas descaradamente. Ela ficou incomodada:

- O senhor não está prestando atenção no que estou dizendo?

- Estou, sim, estou. Pode continuar.

- Então olhe para o meu rosto!

- Desculpe, eu me distraí...

- Eu estava dizendo que não poderei pagar este mês... O olhar do homem queimava suas coxas.

- Nunca viu? Ficou bobo? Sua voz estava alterada. O gerente avermelhou.

- Por favor, fale mais baixo...

- Pare de olhar minhas coxas!

- Por favor, senhora...

- Eu preciso de mais dez mil.

- O quê? Mas a senhora disse...

- Mais dez mil!!

- Calma, calma, vamos ver o que é possível fazer...

- Dez mil!

- Cinco! Eu posso emprestar mais cinco mil...

- Aceito!

Foi difícil, o gerente quis voltar atrás, ela voltou a falar nas coxas, ele amarelou. Papelada, outras promissórias, saiu deixando o homem agoniado. O cachorro merecia! Sentia-se rejuvenescida com os cinco mil na bolsa. O tamanco apertado naquele calor estava insuportável. Entrou numa loja de sapatos. De novo no ar-condicionado. Comprou três pares, simplesmente di-vi-nos. Sem dor nos pés, sentiu fome. Buscou um restaurante de categoria. Pediu strogonoff. Segurava os talheres com afetação. Sabia que era olhada. Bando de idiotas! Saiu, deixando uma boa gorjeta. Lembrou-se do filme que queria ver. Estava bem no horário. Andou até o shopping, tomou o elevador, que não estava tão cheio assim, mas um rapaz ficou com o cotovelo roçando seu seio. Palhaço! O cinema estava vazio. Quando as luzes se apagaram, um homem tentou sentar-se ao seu lado. Ela levantou e foi sentar-se três fileiras adiante. Ele não veio atrás. Tarado! Que dia!

Chorou um pouquinho com o filme. Na saída sentiu vontade de tomar um sorvete, e no caminho da sorveteria entrou em duas lojas de roupas. Tinha que aproveitar os preços! Entrou na bomboniére e comprou chicletes importados para o filho. Ele adorava. Saiu tão feliz que esqueceu do sorvete. Voltou de táxi. Em casa, o filho brincava com o menino do vizinho, enquanto a garota fazia a janta. Jogou as sacolas sobre a cama, conferiu novamente as compras, chamou a garota:

- Terezinha! - A mocinha veio enxugando as mãos no avental. - Será que aquela blusa azul-clarinho que você gosta serve pra você? Se servir, pode ficar com ela, e com a bege também. Tirou a roupa, vestiu um camisolão de ficar em casa e deitou na cama fresquinha. Quando acordou já era noite.

- Terezinha! - A menina entrou no quarto:

- Senhora?

- Cadê o Bruno?

- Tá dormindo.

- Ele jantou?

- Sim, senhora, comeu tudo.

- E você, o que está fazendo?

- Assistindo a Luciana Gimenez.

- Tá bom. Pode ir.

A garota saiu, ela se levantou da cama, olhou-se o espelho, alisou a barriga com as mãos. Foi ao banheiro, tomou um banho demorado. Estava de bom-humor. Abriu o armário, escolheu o vestido novo, de mousseline, bem leve, com estampa florida. Fazendo a maquiagem, aplicou sombra verde-água nas pálpebras, que deixavam seus olhos mais claros. O sapato novo de salto alto deixava sua perna bem torneada. Conferiu sua bolsa. Ainda tinha mil e trezentos reais. Cinqüenta até a boate. O resto pro seu homem ficar bem contentinho.

 
 

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