O
TECLADO
Fernando Zocca
Capítulo I A micro mocréia entrou lépida ao vestiário do clube. Trazia às costas sua mochila com a indumentária que usaria na prática do vôlei. Notou estar só no recinto. Caminhou em direção ao seu armário e ao abri-lo, viu que o da colega estava sem cadeado. Com algum receio de ser flagrada, afastou a porta devagar. Ali dentro havia uma carteira semi-oculta e as roupas da amiga, que com certeza, estava já na quadra. Luísa Fernanda olhou por cima dos ombros para certificar-se de que não havia testemunhas e sacou daquela bolsa o recheio. A tampinha percebeu o coração pulsar rápido. O rubor da face e a angústia que sentia fez com que ela se lembrasse das brincadeiras de mal gosto que os amigos lhe faziam por causa da pouca estatura. Ela experienciava o ódio e percebia a vontade de esganar o ofensor quando ele, no ginásio, dizia pra turma toda ao vê-la na classe: "Ih, chegou a cheira peido, inspetora de rodapé". Luísa Fernanda, muito nervosa, colocou o dinheiro dentro dum pé de meia branca e escondeu o par no fundo da mochila. Ali havia grana suficiente para pagar a conta do boteco. Ela não agüentava mais as cobranças da tia Cris. Esta lhe dissera que só venderia cigarro e cerveja à vista, e que portanto, não tinha mais esse tal de fiado; que podia esquecer. Também já era hora de parar de freqüentar botequim de terceira categoria. Tornaram-se insuportáveis as conversas do Grogue e Ernesto Mail. Imagine se era certo aquilo que o E. Mail vinha dizendo a todo momento: "O Grogue era tão evoluído, mas tão evoluído, que quando nasceu, ao receber o tapa do médico, dissera que denunciaria às autoridades, os maus tratos daquele hospital." Luísa mudou rapidamente a roupa. Estava já com o uniforme de treinos quando se lembrou da última patacoada dita pelo Van Grogue: "Tia Cris, a senhora que confunde música de raiz com "melô" da mandioca, e sky com esse cai, por favor, não vai errar o meu troco, tá bom?". Quando Luísa terminou de amarrar o tênis, entrou no recinto, portando na mão esquerda um balde e na direita uma vassoura, a dona Lucila Mao Mé. Era a faxineira do clube e, como que farejando algo errado, veio logo pra cima da Luisa. Na bucha, assim de súbito ela perguntou: "A senhora mexeu no armário da dona Creuza?" Luísa Fernanda empalideceu. Das suas mãos exsudou uma gosma fria. "É Claro que não" respondeu com a voz tremula. Lucila Mao Mé reforçou o ataque: "Mas como não mexeu? Olha aí o armário dela! Todo bagunçado!" A meio-quilo não pode falar. As carótidas pulsavam tão fortes que lhe faltou a voz, quase desmaiou. Ela reuniu suas forças derradeiras e murmurou: "Imagine que está tudo bagunçado! Pode perguntar pra ela se está faltando alguma coisa". Lucila Mao Mé, conhecida como a "carne de pescoço" do pedaço, mais temida que terrorista suicida e furacão americano, botando os petrechos no chão disse: "Pois não saia dai! Vou chamar dona Creuza lá na quadra". O travamento que Luisa Fernanda sentiu nas pernas impediu-a de sentar-se para retomar as forças. Ela teve dificuldade para lembrar-se de tudo que pudesse usar como desculpa. A jogadora não sabia mais se estava chegando ou saindo do clube. Esquecera o que conversara com aquele frango magro, que lançara aos seus pés o balde azul e a vassoura de pêlos vermelhos. Luisa Fernanda sentiu-se tão desnorteada que não sabia em qual dia do mês e da semana aquele pesadelo se realizava. "Nossa!" pensou ela "Ali vêm as duas. E agora o que eu faço?" Lucila Mao Mé e Creuza chegaram ofegantes. Lucila disse: "Olha dona Creuza! Veja se está faltando alguma coisa na sua carteira." Creuza com o cenho tenso, encarou Luisa Fernanda, e vasculhou os pertences que deixara antes ali. Então ela falou: "Estão faltando R$ 360." Naquele momento, estabacada ao chão, a luz desapareceu da consciência da baixinha. Capítulo II Van Grogue entrou no boteco da tia Cris, desviando-se de Narciseo, o louco. Aquele perebento, sentado numa cadeira encostada ao balcão, lambia os dedos da mão direita e passava depois a meleca nas feridas do braço esquerdo. Grogue perguntou para Cris, depois de apontar, às ocultas, para Narcíseo: "Será que o lixeiro vai demorar pra passar hoje?" Tia Cris fez uma cara de quem não queria conversa, mas foi logo falando: "Sabe o que aconteceu com Luisa Fernanda, lá no clube?" Antes que ela continuasse, entrou toda rebolativa a mais nova moradora do quarteirão. Vestia uma blusa âmbar e calça pesca-siri branca.. As sandálias de couro realçavam os pés bonitos. A moça pediu pão fresco e uma lata de feijoada. Tia Cris embrulhou os produtos e ao passa-los à cliente ouviu o som temido: "A senhora faça o favor de marcar tudo isso na conta do meu marido." Logo em seguida a boazuda saiu faceira. Tia Cris olhou para o Van e disse: "Desse jeito o boteco não sobrevive até o natal." Anotando números num cartão amarelo ela continuou: "Sabe quem é a fulana?" Van Grogue tomou um gole de pinga e balançou a cabeça num sinal de negativa. Tia Cris respondeu: "É a Joelma K. Eima. Mora com o contador do bairro. Eles vivem ali naquele sobrado verde. Ela me disse que o marido não era capivara mas que podia causar muitos problemas para seus desafetos." Van Grogue sentiu uma dor de cabeça forte. Tia Cris pôs-se a falar das ocorrências com a Luisa Fernanda: "Deram o maior flagrante na folgazona. Pegaram ela roubando dinheiro duma colega de clube. Mas tá certo um negócio desse? E olha que depois do furdunço, a ladrona disse que não era nada daquilo. Que foi uma coisa meio louca. Sumiu dinheiro de muita gente, pelo que souberam. E tem mais: ontem saiu no jornal um comunicado dela dizendo que se arrependeu de ter chutado o balde da Lucila e quebrado o cabo da vassoura dela. Dizem que a Mao Mé deu queixa no 37 DP, e que fez exame no IML. Luisa disse que lamentava o incidente em que se envolveram. Afirmou que estava arrependida dos excessos, mas que seu destampatório de deu por causa das atitudes agressivas e preconceituosas daquela "mardita" Lucila contra as pessoas baixotas." Tia Cris colocou alguns copos na pia e, devagar, ensaboava-os um a um. Então ela asseverou: "Olha aí no que resultou tudo isso. Está vendo? Agora ela vive muito nervosa, arisca mesmo. Dizem que não é televisão, mas que está sempre ligada." Van Grogue, pigarreando, pediu outra pinga. Mandou encher o copo. "Bota no segundo andar", ele disse. A comerciante continuou a arenga: "Luisa Fernanda andou tomando uns remédios que lhe deram. É por isso que nos finais de tarde, lá no quintal, com uma latinha de cerveja ao lado, ela sempre dedilha aquele teclado. Falam que, melancólica, ela relembra o tempo em que seu pai era vivo. As músicas que toca sempre são as do Lupicínio Rodrigues. Quando canta, dizem que a matusquela lembra muito a Maysa Gata Mansa. Mas, não te dá dó?" |