ABOBRINHA EM: A PESCARIA
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Edson Campolina
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Sobre
a mesa de madeira rústica, à luz de um liquinho de gás
pendurado na armação do telhado, as cartas do baralho rodavam
de canto a canto.
_ Eu passo. Buiú retirou uma carta da mão e a escondeu debaixo do monte no centro da mesa. Encarou, sério, os olhos de Abobrinha e piscou o olho esquerdo. Um Rei de Espadas chegou à frente de Abobrinha, jogado por Chiquinho. Ele tomou vagarosamente um gole de cerveja, pegou o cigarro no cinzeiro segurando-o na ponta do polegar e do médio, puxou um trago e soltou a fumaça para o alto deitando levemente a cabeça para trás. Colocou o cigarro novamente no cinzeiro e cerimoniosamente: _ Truco! Os adversários se entreolharam por um instante, gesticularam alguns códigos e Barão devolveu: _ Seu veado, eu quero ver você segurar! SEEEIS! Antes que Buiú aceitasse o desafio de Barão, o jogo foi interrompido. _ Ô turma, ninguém vai pescar não? Ta ficando escuro e a carne que nós trouxemos não dá pro churrasco de amanhã. Só tem estas lingüiças que estamos comendo de tira-gosto. Alertou o Cuca. Levava este apelido porque era o cozinheiro da turma. Não gostava de jogar, muito menos de pescar. Pezão e Tunico, sentados em uma pedra, conversavam do lado de fora do rancho. Preparavam parcimoniosamente cigarros de palha com fumo de rolo. Eram os repelentes à beira do rio. Cuca então os chamou para, em conjunto, decidirem o que fariam. _ Nós viemos pra ficar só o Carnaval. Já estamos a uma semana e meia, ninguém quer saber de pescar, só beber, comer, dormir e jogar. Ou a gente vai embora ou vamos ter que arrumar comida. Só tem arroz e cebola. Cuca desabafou. _ Por mim eu ficaria mais alguns dias. Opinou Chiquinho sem desviar os olhos das cartas na mesa. _ Se todo mundo topar ficar, vamos pensar num jeito então. Abobrinha praticamente decidiu por todos, sem dificuldades. _ Ô Pezão, ce que é dessas bandas do Paraopeba, sabe usar a tarrafa? _ Mesmo se eu soubesse usar nós pegaríamos só toco de árvore nessa água barrenta. A chuva de anteontem desbarrancou tudo aí pra cima Abobra! _ Eu tenho uma idéia, mas todo mundo tem que ser cúmplice. Mesmo a minoria que não concordar. _ Intão disimbucha Buiú. Cuca estava impaciente. _ A quase uma légua pra baixo do rio tem a fazenda de Seu Zé Prequeté. Aquele que vende carne pro seu pai, ô Tunico. A noite está sem lua, é melhor ainda. Um instante de silêncio fez os grilos e sapos serem ouvidos na mata do Cortado. Os comparsas entreolharam-se sérios. Um coçou a cabeça, outro acendeu um cigarro, um terceiro virou uma dose de cachaça. Entreolharam-se novamente e deram uma risadinha. O pacto foi selado. _ O Cuca fica aqui pra tomar conta dos trem. E vai preparando mais lenha pro fogão. Decidiu Abobrinha. Pegaram um facão, facas de churrasco, uma caixa térmica de 30 litros, um pedaço de corda e duas lanternas. Calçaram-se e rumaram rio abaixo. Todos decidiram que Buiú, pela sua negritude, iria uns passos à frente. A probabilidade de ser descoberto seria menor e poderia avisar a turma para dar meia-volta. Por uma trilha sinuosa que margeava o rio, aos tropeços por causa do estado de embriaguez de alguns, relembrando casos de roubos de galinhas, frutas, patos e sofrendo elucubrações etílicas, após uma hora e meia de gargalhadas e caminhada chegaram até a divisa da fazenda. Pararam na cerca de arame liso e mourões de eucalipto, espreitaram o quintal da fazenda e cochicharam. _ Será que tem cachorro? _ Tem uma luz acessa. _ Mas é do lado de fora da porta dos fundos, a casa tá fechada. _ É. Mas assim alguém pode nos ver na claridade. Abobrinha examinava tudo ardilosamente. _ Cês num perceberam que o chiqueiro é nos fundos do terreno. Tão querendo invadir a casa do coitado? Vieram buscar café moído ou carne? Barão, do alto de seus dois metros de altura, com voz rouca e trêmula questionou: _ Mas como é que vamos levar um porco inteiro? A gente não agüenta daqui até o rancho. Mesmo que revezando, tá cada um pior que o outro!? _ E se a gente levar um leitãozinho pra assar? É melhor pra pegar, não vai fazer tanto barulho. Num é Buiú? Pezão, já do outro lado da cerca, se agacha e pega com as duas mãos uma grande pedra sabão, com dificuldades a apóia nas cochas. _ Barulho não é problema uái. Dou uma pedrada na testa do bicho que ele desmaia na hora. _ O Cuca vai levar uma semana pra assar um leitão. Não tem forno no fogão do rancho. Além do mais só temos sal grosso. Se esta fazenda tivesse pelo menos uma plantação de alho... Tonico, indignado com a falta do tempero, se manifestou. Estava sentado e escorado no mourão da cerca, exausto pela caminhada. Abobrinha ouvia e matutava uma decisão. A turma vez um breve silêncio. Como se esperassem uma idéia criativa que resolvesse o problema do churrasco do dia seguinte. Então arquitetou o ataque. _ Vamos fazer o seguinte: um leitão não dá, o nosso problema é churrasco. Ceia de Natal é só em dezembro. Levar um porco inteiro é muito pesado e ia dar muito trabalho desossar as carnes. Nós nem sabemos fazer isto. Então só levaremos o que interessa e agüentarmos carregar. Os Pernis do porco. Pelo menos o dono vai poder vender o resto e diminuir o prejuízo. A turma concordou com risadas, interrompidas pela conclusão do plano por Abobrinha. _ Óia só: Buiú, você entra no chiqueiro e escolhe um que não seja muito grande. Porco não deve enxergar direito à noite. O Pezão dá a pedrada. Tem que ser certeira, pro bicho não gritar, logo em seguida o Chiquinho, que conhece mais de anatomia, dá a facada certeira no coração. Sem dó. Mas antes disso, quando o bicho tiver desmaiado, eu amarro o focinho dele pra ele não gritar na hora da facada. Virou para o Tunico e disse: _ Você fica na espreita. Daqui mesmo. Não vai agüentar correr mesmo. Mas se acontecer alguma coisa estranha imita qualquer passarinho. O Tunico concordou. Depois que partiram em direção ao chiqueiro, lembrou que não sabia imitar passarinho algum. Além do mais estava sem fôlego. Então tentou assobiar qualquer coisa. Daí foi correria só. A turma voltou tropeçando uns nos outros. O Chiquinho esqueceu do arame da cerca e bateu com o peito, sendo lançado de volta e caindo de costas. Mis risadas e gozações. Antes que se embrenhassem no mato, Tunico controlou o riso sufocado e chamou a turma de volta. _ Calma gente. Só tava testando! Como de costume no grupo, todos o seguraram e desferiram cascudos na cabeça loura do Tunico. Chegou a correr lágrimas em seu rosto. Deram-lhe umas broncas e partiram novamente em direção ao chiqueiro. À distância, na cerca, Tunico ouviu um gemido agudo vindo do chiqueiro e seus comparsas se deitando. Só silêncio depois. Demorou até que saíssem de volta. Dois segurando a caixa térmica, um na frente iluminando o caminho e dois atrás à espreita de qualquer movimento. Passaram a caixa térmica por baixo da cerca e rumaram pro rancho. Desta vez em silêncio. Talvez pela dor na consciência pelo crime cometido. A embriaguez foi curada no percurso de volta. Sabiam que carne de pernil não era a ideal pra churrasco. Cuca então retalhou a carne, guardou a maior parte num barril de metal com gelo, jogou os ossos e peles no rio e tratou de fritar os retalhos para o tira-gosto da madrugada. _ Onde o jogo parou? Perguntou Buiú. Com todos já sentados novamente à mesa. _ Abobrinha trucou e eu mandei seis. Lembrou Barão. _ Pode mostrar Abobrinha, que eu garanto, vamos pegar este safado sem tamanho! Buiú incentivou o parceiro. Uma espadilha e um sete de ouro rodaram e Buiú fecha a partida com um grito: _ DOOOZZE seu safado ladrão de porco! Descartou um zape esmurrando a mesa. O adjetivo usado fez com que as gargalhadas voltassem ao rancho e alongasse a madrugada. Com o sol às duas horas da tarde, acordaram os primeiros ressaqueados da pescaria. A carne durou mais um dia apenas. Não mediam os excessos. Retornaram à cidade na sexta-feira após a semana do Carnaval. Dois dias depois do sacrifício do porco. Quando desembarcavam as grades de cerveja na calçada do bar e mercearia da família do Tunico, eis que seu Zé Quelé estaciona sua velha caminhonete Ford, de cabine e capô arredondados, anos 60, desce uma grande gamela de madeira com duas bandas de porco sem as patas e oferece a Seu Antônio no balcão da venda. Eram velhos conhecidos. Faziam negócios semanalmente. Seu Zé Quelé cumprimenta o Tunico e pergunta que carga é aquela dos barris da carroceria da velha Fiorino do Tunico.
_ É peixe seu Zé. Olha a tarrafa e as varas. Fomos buscar lá no rio das Velhas. Pra lá de Belo Horizonte. _ Mas lá pertin de casa tem o Cortado. No rio Paraopeba tem até Dourado. Minha fazenda é no barranco. Vai lá que ocês vão gostá! Abobrinha se aproximou matreiro e encerrou a conversa com a promessa de uma visita numa próxima vez. |