O RETRATO DE DORIAN GRAY
Bárbara Helena
 
 

Abriu caminho no corredor apinhado, cheirando a gordura. Diante da porta, mais curiosos.

Mulheres muito pintadas, enfiadas em roupões floridos e gastos, alguns indivíduos de sexo duvidoso, cabelos curtos e maquiagem pesada, longas unhas pontiagudas, olheiras roxas, segurando crianças magras. Dentro, uns poucos homens de aparência desleixada e uma mulher.

- Por aqui, doutor

Falava com a mistura de respeito e receio que inspira a palavra policia. Os homens evitaram seu olhar, culpados em suspensão.

- Eu sou vizinha do Dorian, o dono do apartamento, estranhei não ter vindo tomar café como fazia todas as manhãs, chamei o porteiro (mostrou um dos homens) arrombamos a porta e achamos... - sua voz quebrou ligeiramente... o corpo.

Apontou para o quarto, sem coragem de voltar lá. Realmente, não era uma cena agradável. Sangue por todo lado e no centro um homem caído de costas, olhos azuis arregalados, tórax perfurado. O instrumento, ainda ensangüentado, estava em sua mão direita, uma espátula afiada. Mandou o fotógrafo registrar tudo e examinou o aposento, enquanto os peritos faziam seu serviço.

Pelo que soubera, tanto a porta do apartamento, como a do quarto estavam trancadas por dentro. Mais um crime daqueles bons para ler e péssimos de resolver. Ninguém conhecia o morto. O dono do apartamento, uma bicha inglesa, um tal Dorian Gray, estava desaparecido. Seria ele o assassino? Suicídio daquela maneira selvagem parecia pouco provável. Mas e as portas trancadas por dentro?

-Onde ele está?

A mulher o olhou sem expressão

- O tal Dorian onde está?

- Não sei, doutor, juro - parecia temer que a acusasse de esconder o homem no bolso - Sumiu desde ontem, eu expliquei pro senhor... ele vinha sempre...

- Tudo bem... deixa pra lá. A gente acha ele. E o outro quarto?

- Ele mantinha trancado e continua assim, o senhor quer que ajude a arrombar?

O porteiro apareceu, feliz de poder mostrar boa-vontade.

A porta derrubada revelou seu segredo: uma espécie de altar, de veludo vermelho, e sobre ele um quadro, o retrato pintado de um homem belíssimo, muito jovem, louro, olhar inocente e sedutor.

- É o Dorian, doutor, mas nunca tinha visto este quadro antes, ele não permitia que a gente entrasse aqui, nem pra limpar.

- Parece muito com o outro, o velho... o morto - sua voz vinha de séculos atrás, o eco da porta de um túmulo ao se fechar.

- Agora que o senhor falou.. parece mesmo.. será pai dele? Que coisa...

Disfarçou, respirou fundo e abrindo caminho à força de ombradas e palavrões, chegou até o corredor.

Vinte anos se passaram, mas o olhar de luxúria era exatamente o mesmo do retrato. Era ele, outra vez ele, o belíssimo Tadzio, que conhecera num baile de máscaras, o jovem que o ferira desesperadamente, seu único e verdadeiro amor. Pessoas falavam ao redor, a perícia, os vizinhos, mas estava longe. Muito além da piedade ou do castigo. Ouvindo Mahler em Veneza.

 
 

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