Abriu
caminho no corredor apinhado, cheirando a gordura. Diante da porta, mais
curiosos.
Mulheres muito pintadas, enfiadas em roupões floridos e gastos,
alguns indivíduos de sexo duvidoso, cabelos curtos e maquiagem
pesada, longas unhas pontiagudas, olheiras roxas, segurando crianças
magras. Dentro, uns poucos homens de aparência desleixada e uma
mulher.
- Por aqui, doutor
Falava com a mistura de respeito e receio que inspira a palavra policia.
Os homens evitaram seu olhar, culpados em suspensão.
- Eu sou vizinha do Dorian, o dono do apartamento, estranhei não
ter vindo tomar café como fazia todas as manhãs, chamei
o porteiro (mostrou um dos homens) arrombamos a porta e achamos... - sua
voz quebrou ligeiramente... o corpo.
Apontou para o quarto, sem coragem de voltar lá. Realmente, não
era uma cena agradável. Sangue por todo lado e no centro um homem
caído de costas, olhos azuis arregalados, tórax perfurado.
O instrumento, ainda ensangüentado, estava em sua mão direita,
uma espátula afiada. Mandou o fotógrafo registrar tudo e
examinou o aposento, enquanto os peritos faziam seu serviço.
Pelo que soubera, tanto a porta do apartamento, como a do quarto estavam
trancadas por dentro. Mais um crime daqueles bons para ler e péssimos
de resolver. Ninguém conhecia o morto. O dono do apartamento, uma
bicha inglesa, um tal Dorian Gray, estava desaparecido. Seria ele o assassino?
Suicídio daquela maneira selvagem parecia pouco provável.
Mas e as portas trancadas por dentro?
-Onde ele está?
A mulher o olhou sem expressão
- O tal Dorian onde está?
-
Não sei, doutor, juro - parecia temer que a acusasse de esconder
o homem no bolso - Sumiu desde ontem, eu expliquei pro senhor... ele vinha
sempre...
-
Tudo bem... deixa pra lá. A gente acha ele. E o outro quarto?
-
Ele mantinha trancado e continua assim, o senhor quer que ajude a arrombar?
O porteiro apareceu, feliz de poder mostrar boa-vontade.
A
porta derrubada revelou seu segredo: uma espécie de altar, de veludo
vermelho, e sobre ele um quadro, o retrato pintado de um homem belíssimo,
muito jovem, louro, olhar inocente e sedutor.
- É o Dorian, doutor, mas nunca tinha visto este quadro antes,
ele não permitia que a gente entrasse aqui, nem pra limpar.
-
Parece muito com o outro, o velho... o morto - sua voz vinha de séculos
atrás, o eco da porta de um túmulo ao se fechar.
- Agora que o senhor falou.. parece mesmo.. será pai dele? Que
coisa...
Disfarçou, respirou fundo e abrindo caminho à força
de ombradas e palavrões, chegou até o corredor.
Vinte
anos se passaram, mas o olhar de luxúria era exatamente o mesmo
do retrato. Era ele, outra vez ele, o belíssimo Tadzio, que conhecera
num baile de máscaras, o jovem que o ferira desesperadamente, seu
único e verdadeiro amor. Pessoas falavam ao redor, a perícia,
os vizinhos, mas estava longe. Muito além da piedade ou do castigo.
Ouvindo Mahler em Veneza.
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