TEM QUE SER NA HORA
Alberto Carmo

 
 

Nunca fui consumista; aliás, odeio consumismo, considero que seja o grande mal do mundo. Não que pregue uma vida na base de capim e alpiste. Sou adepto da simplicidade com alguns toques de classe - não acho que pitar um Cohiba seja abuso de autoridade.

Como ninguém é perfeito, e já rimando, tenho um sério defeito: quando cismo de querer alguma coisa tem que ser na hora. Isto é, se eu não conseguir o objeto de desejo quase que imediatamente, emburro e prendo a respiração até ficar azul - se houver alguém ao meu lado que aceite chantagem emocional e dramalhões, claro. Mas, sempre que posso, arrumo alguma vítima para dividir comigo essas dolorosas horas de ataque consumista. Quando não consigo e acabo sozinho diante do piripaque, dou um jeito de chantagear a mim mesmo.

E assim foi certa feita. Estava no escritório, lá na Líbero Badaró, centro velho de Sampa, quando observei que um rapaz do departamento calçava um belo par de mocassins. Eu adorava mocassins desde a infância, e minha mãe não deixava comprar - achava que iam esgarçar e nos obrigava a usar sapatos com cadarço. Havia me esquecido disso e nunca me preocupei em adquirir um par deles depois que cresci. Foi a conta.

Adiantei a hora do almoço e saí correndo até uma sapataria que ficava bem em frente ao banco. Cheguei esbaforido e fui perguntando: - Tem mocassim?

- Tem sim! - respondeu o atendente. Que número?

- Quarenta! - respondi ansioso.

Passados dois-quartos de minuto, o rapaz sentenciou: - Só tem dois pares pretos. Um trinta e nove, e um quarenta e dois. Sinto muito...

- Não, espere! - apelei. Eu dou um jeito. Quero experimentar os dois, isto é, os quatro.

O garoto me olhou com cara de poucos amigos, mas me atendeu.

Não vou dizer que vi minha vida inteira passar diante de mim naquele momento, mas foi quase isso. Primeiro, fitei os quatro digníssimos mocassins diante de mim - rimou novamente, é a emoção. Então passei ao deleite de calçá-los. Fui direto ao quarenta e dois. Meu pé direito entrou feito faca quente na manteiga. Calcei o outro. Ergui-me e dei uns passos. Bem, quando olhei no espelho, lembrei-me do Piolim - sobrava calcanhar, o pé escorregava e eu nem conseguia me equilibrar direito dentro deles. Descartados, definitivamente. Próximo!

Peguei o trinta e nove já rezando e pensando em fazer uma promessa. Qual o quê! Quase rasguei as calças para encaixar um pé. Tirei o paletó e, com esforço hercúleo, calcei o outro pé. Ergui-me novamente e arrisquei uns passos. Tive que contrair o estômago, estufar o peito, mas dei uns bons três passos, talvez quatro.

Naquele momento, mil pensamentos me passaram pela cabeça: vai alargar, esgarçar, aperta porque é novo, etc. Convenci-me rapidamente e concluí: - Vou levar!

- Quer que embrulhe? - disse o vendedor.

- Pode deixar, já vou com eles. Assim vão se ajeitando, sabe como é. Sapato novo sempre aperta um pouco.

Paguei e saí. Devo confessar que quase fui atropelado ao atravessar a rua. Meus pés travaram. Voltei ao escritório e disparei até o banheiro. Tirei os sapatos. Que alívio...

- Meus pés estão inchados do calor! - argumentei comigo mesmo. Afinal de contas, era verão. E, não sem criar mais uma ou duas rugas na testa, calcei meu pisante novamente e fui até minha mesa.

Como sou otimista, assim que me sentei, estiquei as pernas embaixo da mesa e pus-me a observá-los. - Meus mocassins, finalmente!

Tratei de me concentrar no serviço e agir naturalmente. Não vou dizer que foi o pior dia da minha vida, mas está no páreo. Até minha alma se sentia espremida. Parecia que o mundo ia acabar, que alguma coisa me apertava os pés e o sangue sairia espirrando feito lança-perfume pelas minhas orelhas.

Lá pelas cinco da tarde eu nem ousava me levantar da cadeira. Na verdade, nem erguer os olhos eu ousaria, tamanha a dor que me consumia dos mindinhos aos dedões; fora a bolha no calcanhar.

Não suportei mais e chamei minha secretária: - Meu doce, vai lá na sapataria e me compra um par de pantufas. E não aceite "não" como resposta! Se não tiver, manda eles fazerem na hora e espera até acabarem. Nem precisa embrulhar. Traz correndo!

- Mas, chefinho, e o relatório que você me pediu e...

- Nem mas, nem meio mas! Tem que ser agora! - ordenei.

Ela foi e ainda pude ouvir seu reclamo: - Tudo tem que ser na hora!

Apesar de tudo, fiquei feliz. Já não se faziam secretárias como aquela.

 
 

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