VOU PERFUME ENCONTRAR
Eduardo Sales
 
 

Sou Cayro Benevides, sessenta e dois anos, casado, quatro filhos e dois netos. Por mais que o tempo passe é difícil esquecer certos momentos da vida. Antonieta foi um desses. Dois anos de relação ardente, sobretudo quanto à cumplicidade, ao terno amor.

Antonieta, porém, cometeu o maior erro da sua vida naquela noite de verão, dezessete de dezembro de sessenta e seis: decidiu se banhar de um perfume o qual ela designava como lírio do campo. Sim, esse havia sido seu maior erro. Preferiria que me traísse!

Foi naquela noite, no alojamento da universidade, e com um dormitório só para ela (e eu) que atingimos o pecado celestial. Cheirá-la, literalmente, era gostoso demais.

Eu estudava Direito no Mackenzie e ela, Filosofia na USP. Nossos amigos e familiares não sabiam e nem poderiam saber de nossa relação. Seria uma catástrofe para mim, seria ignorado por companheiros de luta contra o comunismo. Aí se concentrava minha maior incoerência. Antonieta era contra a revolução e de vez em quando brincava comigo dizendo que se tornaria uma guerrilheira e partiria ou para a região do Araguaia ou para o interior da Paraíba. Eu não a levava a sério. Por mais que tivéssemos diferenças políticas e ideológicas, eu não era um radical e se fosse necessário trocaria de lado por ela. É que sempre fui muito apegado àqueles que me cercavam.

Completos dois anos de relacionamento secreto nas entranhas de sua faculdade (três vezes por semana eu aparecia lá), a situação política ferveu e nossos respectivos amigos formaram grupos e entraram em conflito. Eram pichações nas duas escolas, eram as guerras de paus e as bombas caseiras. Nós não nos intrometemos, apesar de sabermos das estratégias engendradas nos dois lados.

Numa sexta-feira do fim de sessenta e oito tivemos uma discussão feia, ela querendo que fugíssemos para o interior da Paraíba e eu, covarde, não fui. Mesmo nervosa, "braba", ainda portava uma certa docilidade ao falar, e ainda tinha aquela fragrância que inebriava meus sentidos. Só de pensar em ficar sem ela me davam calafrios. Mas aconteceu.

Dois dias depois da discussão ela me ligou com uma voz presa a pedir desculpas de não sei o quê, e disse adeus. Oito meses depois recebi a pior notícia, tornou-se uma guerrilheira da "Libelu". Ficaria presa por um ano, e logo após se exilaria no Chile por três. Nunca mais a vi. Sempre a amei.

Desde aquele telefonema, em sessenta e oito, tenho ido atrás de campos de lírios. Minha esposa, companheira fiel, nunca soube desse amor mal resolvido. Hoje tenho uma empresa de perfume feminino e sei que um dia vou encontrar a fragrância certa. A que me fazia pecar e buscar a santidade.

Testo diferentes fragrâncias, todos os dias. Infelizmente, nenhuma se compara à de Antonieta. Todas as noites, principalmente nas de verão, sinto uma estranha saudade de tal cheiro. Vou reencontrá-lo.

 
 

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