O GUARDIÃO DOS LIVROS
Daisy Melo
 

Ele era o guardião dos livros. E naquele quarto, onde eles forravam as paredes, tudo era tão fascinante.

Eu subia num banquinho e passava meu dedo pelas lombadas coloridas que guardavam tantos segredos. Brincava com as traças, espantando-as com um peteleco. Lá, que cheirava deliciosamente a papel velho e esquecido, o sol esgueirava-se opaco pelas frestas das cortinas cor de carne e transformava-se, ser mágico, em ar esfumado.

Ele convivia mais com letras e palavras do que com gente e sabia com certeza, que um dia eu também guardaria aqueles livros e que conheceria todos os mistérios. Decifraria a dor e a morte, pois minha vida fora talhada no dia do meu nascimento.

Mas o guardião se foi carregando seus livros e suas letras. Sabedor do seu destino, senhor do seu futuro, encontrou sua melhor vida. Sobraram apenas os livros infantis, os disquinhos coloridos, bonequinhas de papel e as revistas em quadrinhos, que foram empilhadas nas prateleiras, agora secas e nuas.

Além das prateleiras vazias, ficou o susto da inadequação, onde a indiferença rasgava a carne e esgarçava as veias.

Sobrou uma menina encolhida, perdida no próprio turbilhão da fantasia que agora não tinha como se escoar, a espantar o sofrimento como alguém amassa uma página de rascunho.

A vida começou a ser reconstruída com letras tímidas e livros pálidos. Pouco a pouco , porque é tão difícil montar uma vida quanto uma biblioteca. Adotei um ar tênue, tom pastel, especialista que era em alheamentos. Fingindo não querer saber do meu destino, fugia dele. E carregava a culpa imensa de algo que deveria ter feito, mas tinha esquecido. E guardava nas prateleiras das minhas solitudes, pedaços de rendas e alfazemas, flores, duendes e anões, alguns rancores e muitas prisões. Tudo enfurnado, amarfanhado, sem cuidado e sem carinho.

Não me bastavam as dores de hoje. Refazia as do passado e esperava aquelas que viriam. Precisava respirar devagarinho, pensar com cuidado e ainda não conseguir. Desfazia-me nos mil pedaços de um quebra-cabeça que nunca acaba, nos estilhaços de espelhos e fragmentos de desejos.

Afundo na cama. Repenso e refaço meus inúmeros caminhos. Tantas voltas... O telefone toca e ouço uma voz distante, melódica e ainda criança. Sinto mais que ouço: o guardião dos livros se fora dessa vez de forma conclusiva. Não mais expectativas. Ainda mais para mim que já pouco esperava, que já não pertencia a ele ou a ninguém. Era apenas uma a mais para quem a dor de ter a saudade e a solidão como destino ficou marcada na poeira da estrada, junto aos passos que se foram há muito.

Levanto e me estico como a Vivi, minha gata tigrada. Lá fora o vento bate nas folhagens e recordo uma canção há muito aprendida. Nada a fazer. Só arrumar os livros nas prateleiras que esperaram vazias todos esses anos e construir a minha biblioteca, pois agora, sou eu a nova guardiã dos livros.

Para o meu pai.

 
 

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