COM AMOR E SORDIDEZ
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Bárbara Helena
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"I
packed my bags and paid my bill, O delegado me devolveu o caderno. Era impressão minha ou havia uma dor no canto do olho? - Vida ingrata a de vocês. - Ingrata e linda - respondi. - Pode ser. Tem gosto pra tudo. Blues... acho que nunca ouvi - Cigarette blues... nome esquisito!... Ria, com um dente de ouro lateral. Como meu Billie, Edvaldo na carteira de identidade. No canto do olho a dor continuava, mágoa, sei lá. - Nós achamos bonito na época. Ainda acho. - minha voz era gelada. Alargou o sorriso: - Não precisa morder, menina. Tudo bem - é bonito. Bonito e esquisito. Você é sempre assim? - Assim como? - Sei lá, na defesa, com a faca na bota. Parece um cachorro acuado. Fica fria que eu gostei do teu livro. Chegou perto de mim, eu recuei. No retângulo da janela brilhava uma lua exangue. - Não quero fazer mal a você, não sou monstro. Pegou de novo o caderno entre os meus dedos gelados. - Isto é bom, garota. De verdade. Passou a mão com muita delicadeza no meu cabelo e comecei a chorar, rio deslizando pelo peito, molhando a blusa escura. Tudo voltou, torrente rompida. Os seguranças da boate me prendendo no quartinho fedido, Marina e Mimi apavoradas ao meu lado. Mas o pior foi Billie, seu olhar de interrogação e medo. Ainda era eu, meu amor, meu Edvaldo, era eu, sempre fui, nunca deixei de ser. No mundo real fui fichada, flagrante lavrado. O desgraçado não morreu, pela graça de algum deus que nunca me olhou antes. A pena ia ser mais leve. Ali, naquela delegacia noturna, tudo parecia distante, filme borrado. Só os olhos de Billie na noite e a voz estranhamente doce do homem ao meu lado. - Tenho um presente pra você. Vem cá. Fui, ainda na defesa. Entramos nas celas dos homens. Cigano, que eu conhecia de outro tempo estava lá por embriaguez e briga. O delegado tirou um estojo do bolso. Era uma gaita. - Posso te pedir um favor? - a dor no canto do olho continuava - canta um blues, daquele dos Cigarettes. Do teu livro - Saint Louis blues, lembro deste. Entregou o instrumento pro Cigano. Os outros homens olharam desconfiados. Foi tentação demais. No retângulo entre as grades, a lua de ontem. E eu cantei, naquele lugar perdido, acompanhada pela gaita do Cigano: Summertimes que falava de um lugar distante, de um verão azul, plantadores de algodão, as flores amadurecendo brancas nas tardes dolentes do sul. E cantei Cry me a river no meio daqueles homens duros de cachaça e as lágrimas brotaram em mim de novo, depois de tanto tempo. E eles sem entender inglês, ouviam meu pranto pelas nossas vidas desgraçadas oh yeah!, chore-me um rio vagabundo de águas fundas, lavador de reinos de podridão. E cantei os blues de São Luis, sua dolorida magia, as veredas escuras de cidades perdidas, submersas pelas águas, lamentos negros daqueles como nós, desterrados de nenhum lugar. O delegado ouviu tudo calado. Do seu coração seco, veio a voz de montanhas distantes, ancestral perdida de lamentos há muito esquecidos. Toda a dor da vida mesquinha, lembranças que não houve, um fox-trot na madrugada, blues encalhados nos bueiros, sob a maquiagem pesada da desesperança. Via a mulher passando roupa, a filha com os cadernos da escola, toda a vida rodando, sinal vermelho de incapacidades, o doutor que nunca pode ser. Doutor, me ajude, agora sim, potestades e anjos e demônios, nos tímpanos. Aleluia. Abriu a porta da cela. - Vai. Olhei para ele. - Sai, sai logo antes que eu me arrependa. Vou te arrumar um habeas-corpus, sabe o que é isto? Eu sabia. - Vai embora desta vida, menina, você é artista. Deixa que eu me entendo com o Doutor Advogado e o promotor. O cara já está bom mesmo, aprontando outras. Filho de uma cadela. Os presos aplaudiram batendo na grade. Eu me curvei como no teatro. Sorri para eles. O delegado afastou meu agradecimento com olhar cansado, voz amarga: - Vai embora, já disse. Pega tuas coisas. Apanhei minha bolsa em cima da mesa, o casaco. Ele segurou meu braço: - St Louis blues. Lindo!... Os olhos brilhavam. Sorriso no canto do olho. Comecei a rir baixinho. Quando cheguei ao trailer Mimi e Billie dormiam - cheiro de bebida e cigarro costumeiros. Marina fumava encostada na porta. - Te soltaram ou você fugiu? A voz era pastosa. - Fugi. - Fez bem. E agora? - Agora? Não sei... De repente percebi o que me prendera aos Cigarette blues todos aqueles anos - não era meu amor por Billie ou a música esfrangalhada, os blues doloridos da minha alma. Era uma estranha mania de acreditar, uma esquisita vontade de que tudo fizesse algum sentido. Sorri para o céu onde as estrelas empalideciam. Não sabia o que ia acontecer aos Cigarette Blues. Ou a mim. Não sabia nada. Mas minava de mim uma alegria corrosiva. Cantarolei: ''Summertime,
and the living is easy Ao longe, amanhecia. |