BALANÇO
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Adriana Vieira Bastos
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Sentada em frente onde tudo começou, experimentava o sabor de uma saudade estranha. O trilho continuava frio, impassível, mas o trem transformara-se numa doce lembrança de um tempo que não voltaria mais. Olhou para o garçom, pediu uma cerveja, tentando disfarçar o turbilhão de emoções que tomava conta de si. Lágrimas brotavam sem lhe pedir licença. Não era tristeza, melancolia. Simplesmente um raro momento de delicadeza. De passeio à sua cidade de origem, via seu passado encontrar-se com o futuro. Encantada com o "recordar é viver" narrado pela amiga de longa data, não só embarcava no túnel do tempo, como se deliciava ao ver o espanto da filha ao descobrir que ela também já fora um dia criança. Outro, adolescente... E entre um gole e outro, risos, surpresas, via, num relance mágico, passar freneticamente à sua frente o pique de esconde-esconde, a bola de gude, a pipa, amarelinha, o primeiro beijo, a primeira paixão, o desencanto, os sonhos, as tristezas, os amores, alegrias, euforias... Não entendia como a amiga relatava com tanta riqueza de detalhes, fatos de sua vida que nem mais se lembrava. Das brincadeiras de colégio, embarcaram no trem em busca de novos horizontes. A república, a faculdade e, numa bifurcação da vida, cada uma seguiu o seu próprio destino... Outra cerveja e a pergunta esperada do grande reencontro - ousara tanto quanto sonhou, um dia, ser capaz de ousar? Olhou para a amiga, para a filha, para a amiga da filha, para o trilho, para a casa em frente ao trilho e simplesmente sorriu. Encheu o copo e as convidou a brindar. Sabia que tinha porque comemorar! Não rodou mundos como esteve no inicio de sua vida a imaginar. Mas, no seu pequeno universo, ousou enfrentar o desafio que a vida resolvera lhe oferecer - a arte de se relacionar... Pediu a saidera. Hora de voltar. Arrumou as malas, despediu-se de onde tudo começou, pois sabia que ali não era mais o seu lugar. Alegre, avisou a família que a esperasse, pois era com ela que desejava a vida continuar... |