CORAÇÃO DE PEDRA
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Raymundo Silveira
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É fácil completar setenta? Bem que se tenta, e não é tão difícil assim. Difícil é completar setenta... Não é fácil pra ninguém, mas é muito mais difícil quando não se tem ninguém... Manter a dignidade, ter só o vento por companhia, enfrentar o medo de um mal súbito, enfrentar o mal súbito, ter de trazer a própria marmita, jamais dar um bom dia ou não receber uma boa noite - nem da noite -, sentir-se doente e ter de estar sozinho a fitar as paredes e o teto, fazer setenta anos... Sim. É relativamente fácil chegar aos setenta. Mas é muito difícil... Hoje é meu aniversário. Ontem, há sessenta e três anos, hoje também era o meu aniversário. Incrível como uma língua tão rica utiliza a mesma palavra para significar algo tão diferente na vida da mesma pessoa. Portanto, por uma questão de coerência, hoje não é meu aniversário: é meu antianiversário. De repente, uma lufada de passado sopra janeladentro, trazendo consigo um aroma de terra molhada, de marmeleiros florescendo, de ninhos de passarinhos, de mata-pastos e de babugens, de lençóis limpinhos que se mesclavam com o cheiro da minha mãe me embalando. Cheiro de inocência, de paz, de serenidade, de sono, de madrugadas, de sonhos, de amanhãs, de anoiteceres e de amanheceres, de luares, de céus estrelados, de banhos de chuva e de riacho, de proteção, de ilusões, de esperanças, de felicidade. E vem uma vontade louca de desembainhar lâminas de lembranças, cindir o passado, como se poda um arbusto centenário, separando-o em múltiplas porções, atirando fora os galhos podres dos desenganos, e enxertar um broto remanescente num pé de saudade recém-plantado. Depois, ir ao encontro do amor da juventude, reatar os nós de nós dois, desfazer os desprazeres, completar o que sempre começamos e nunca terminamos e perguntarmos juntos ao vento por que ele apagou, tão cruelmente, as correntes de fogo que uniam as nossas almas. Pôr-do-Sol da minha aldeia, em algum dia de fevereiro de mil novecentos e futuramente... Um horizonte de pedra se interpunha na paisagem. Em seu lugar, erguia-se de um extremo a outro do alcance da visão, majestoso relevo cujas tonalidades mudavam com as horas e com as variações climáticas. Naquela tarde, os derradeiros raios do crepúsculo, incidiam sobre ele, compelindo-o a refletir uma coloração turquesa. O azulado da montanha, mesclado a um branco vaporoso de neblina, transmitia a impressão de gigantesco iceberg a me proteger dos ataques solertes deste corsário onipresente e invisível a que chamam tempo. Pontuando toda a sua extensão, pequenos focos avermelhados e tremeluzentes como se a serrania estivesse completando anos e aquilo fosse um bolo de aniversário. Só que as velas quem assoprava era eu. Janelas
do meu quarto, em tanto de tanto de dois mil e nunca mais... Vigora um
regime prolongado de estio, e a montanha parece agora um amontoado descomunal
de cinzas, como se tudo fora o rescaldo saliente de um incêndio
catastrófico. O Sol já se pôs. De igual modo, como
aconteceu naquela tarde, surgem, os pequenos focos avermelhados e tremeluzentes.
Nem de longe lembram bolos. São labaredas ateadas ao solo pelo
homem, para exterminar ervas daninhas. Mas é como se ela tivesse
morrido e aqueles pontos luminosos fossem as chamas do velório.
Então, calo a minha dor. Antes que um calo na garganta me cale
para sempre. |