DIAS PIORES
Francine Ramos
 
 

Talvez eu tivesse escolhido dias piores. Entre a casa, o carro e o jardim. E principalmente, entre a interminável chuva que não me deixava ver com nitidez o que poderia estar em minha volta. O que será essa névoa que não parece vir da chuva, tampouco do tempo que me resta?

Acordei naquela tarde sem motivos especiais para me arrumar, mas abri a porta do meu velho guarda-roupa e busquei o vestido mais bonito e que mais me trazia lembranças do passado. Um medo atingiu meu pensamento, uma angústia dessas que parece arrancar do peito a dor infinita. Fiquei zonza e confusa em meus pensamentos. E a cada piscar de olhos eu percebia meu coração mais fraco. Recordei das tardes que brinquei alegremente em vestidos leves de algodão entre o jardim e a garagem fazendo de conta que eu era pilota de fórmula 1 e que o carro velho de meu pai era uma linda Ferrari vermelha com florzinhas miudinhas nas laterais. Eu era uma criança detalhista, imaginava sempre o mundo cor-de-rosa e nunca entendi porque Deus fez o céu azul, se rosa era muito mais bonito. Às vezes eu considerava Deus machista e pensava que quando o encontrasse pediria um céu cor-de-rosa. Que bobagem a minha! E agora que me encontro velha e cansada, penso que será mais coerente eu pedir para não ir para o inferno. Deixa pra lá o céu cor-de-rosa.

Olhei no espelho e por alguns instantes pensei que veria aquela menina do vestido de algodão, mas o que encontrei foi meu rosto marcado pelo tempo, minhas sobrancelhas fracas e meus olhos pequenos perdendo toda a expressão profunda que tinha quando jovem. Me senti desapontada e pensei que minhas farras, festas e bagunças poderiam ser em menor quantidade para, quem sabe, eu não me acabar tanto assim.

Abri meu estojo de maquiagem, passei um batom rosado, sombra cor-de-rosa misturada com cinza-carvão - ficou melhor. Sai do quarto e passei pela cozinha e veio em minha mente a recordação do meu primeiro casamento. Da minha solidão quando meu marido chegava de madrugada das farras. Sorri. Um sorriso falso, céptico, talvez, porque eu e toda sociedade da época sabia de suas traições, mas ninguém saiba das minhas. Engraçado como é a vida. Por muito tempo fui considerada sonsa e mal amada e depois que ele morreu fui considerada a esposa mais fria até pela minha família. Não me importei, não me importo. O importante é que gozei da minha vida como ninguém. Até quando sofri, foi insuportável o suficiente para ser inesquecível igual cena de novela.

E eu procurei não mentir, até mesmo quando a necessidade invadia as entranhas de meus desejos eu me controlei, fugi! Talvez trauma pelas poucas vezes que fui infiel e sucumbi às afrontas de meu pai que era um homem severo e nunca compreendeu minha falta de jeitos nos afazeres femininos, pois enquanto mamãe tricotava um novo casaco eu estava nas reuniões que Pedro, meu irmão, organizava em casa para discutir política ou muitas vezes para simplesmente saborear um novo fumo. E como eram boas aquelas reuniões! Lá em casa tinha um porão escuro e mal acabado, com poltronas velhas e o teto embolorado; foi então que eu tive a idéia de reformá-lo para as reuniões: pintei a parede de cinza, coloquei uma capa vermelha no sofá velho, comprei luminárias novas e diferentes, consegui alguns tapetes velhos, mas em bom estado na casa de Cristina, e também uma mesa para os jogos de cartas. E para completar, no dia da inauguração, Lúcio nos trouxe uma vitrola e alguns discos das músicas da época.

E mamãe tricotando seus casacos, bordando toalhas, e eu - a filha mais velha - entretendo-se com os homens da cidade! Não sei por que, mas mamãe nunca me disse nada diretamente a respeito dessas minhas andanças. Vez ou outra ela comentava a minha falta de delicadeza, mas logo em seguida, elogiava meus vestidos simples e andar de mulher; dizendo que cedo ou tarde eu arrumaria um bom partido para casar e ter uma penca de filhos. Acho que mamãe nunca se conformou em ter tido apenas três filhos. Ela queria mais, dizia os olhos dela quando conversávamos sobre os filhos de Luzia - a vizinha mexeriqueira que tinha quatro filhos homens e três mulheres. Dos homens, eu gostava apenas de Alfredo que era um rapaz correto, elegante e sincero. Mamãe dizia para eu casar com ele, mas meus interesses afetivos nunca foram para ele. Das meninas, eu gostava de Bete e Lúcia apenas, pois elas eram capazes de conversar sobre outras coisas a não serem bordados e casamento.

Em um pequeno período deste mesmo ano Alfredo declarou seu amor por mim, eu fiquei sem reação, não esperava isso em momento algum, mas como a solidão foi sempre minha companheira desde essa época, cedi aos seus encantos e namoramos escondido no porão por mais de um mês. Alfredo foi um ótimo ouvinte. Ele escutava meus anseios, ouvia meus assuntos tolos com muita paciência e sempre dirigia a mim um olhar de ternura, apaixonante até o dia que não mais suportei sua calmaria, sua falta de rebeldia e a monotonia de sua voz dizendo que queria casar. Foi neste momento que percebi a tolice que fiz alimentando os sentimentos dele, de criar ilusões ao meu respeito não genuínas.

Lembro que neste dia ele me convidou para um jantar em sua casa. Eu estava disposta a ir, mas a lembrança patética de sua família me fez desisti na última hora, e então, terminamos. Eu não queria dizer os motivos, mas seu olhar patife e desiludido me deixou furiosa, porque eu nunca tolerei pessoas fracas demais, e isso Alfredo era ao extremo. E assim eu disse a ele com todas as letras que era tolo demais nosso relacionamento no porão, que era para ele esquecer daquela bobagem toda de noivado e que eu queria outras coisas para a minha vida. Chorei e ele não entendeu nada, tampouco eu ao receber a notícia um mês depois de seu casamento com Cristina, a filha do Sr. Gomes, dono da Confeitaria do bairro; a mesma que me deu os tapetes para as farras no porão.

 
 

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