CRÔNICA NÚMERO 14
Osvaldo Pastorelli
 
 

Passam-se cinco horas da meia-noite.

Nessas quatros horas de insônia marota, tentei por ordem em meus afetos desorganizados.

Paciente coloquei-os lado a lado como os vinis na estante a minha frente.

Apesar de parecer fácil o manuseio dos afetos jogados no baú do inconsciente, é preciso certo cuidado com eles, um certo quê de talento e sorte.

Por exemplo: não deixar o pó do esquecimento impregnar os sulcos da sensibilidade.

Uma vez por mês ou uma vez a cada quinze dias, passar o feltro inebriante da paixão para que suas fibras criem perceptíveis vibrações ao tocar a sensível agulha cósmica do coração.

É um confronto onde o afeto recentemente adquirido se opõem aos afetos adormecidos, estes mais difíceis de serem manuseados.

Os atuais se mostram eficazes a ponto de serem eficientemente enganosos.

Alguns apenas.

Os adormecidos são ruins de serem visualizados.

Ofuscados pelo descuido vivem no aperto do egoísmo narcisista presos desnecessariamente.

Sejam eles quais forem, os afetos devem ser livres totalmente sinceros para quebrarem o preconceito e os grilhões da opressão.

Como prender o afeto quente e amoroso e sensual de um olhar?

Como prender o afeto das carícias inimagináveis de mãos desejosas de prazer e afagos?

Como prender o afeto melodioso da voz ao cantar a libido de dois corpos que mutuamente se tocam?

Como prender o afeto do gemido delicioso da amante na hora do gozo existencial?

Como prender o afeto do sussurro encantador da natureza em sua eterna criação?

À medida que a limpeza progride, mais fácil é sua ordem.

E num instante imperceptível surgem espaços para outros afetos tanto quanto necessário como os adormecidos o são.

À medida que o trabalho estafante avança, os afetos se relaxam cômodos e simpáticos lado a lado na estante da vida, proporcionando paz e feliz tranqüilidade.

 

(Crônica inspirado no poema: "meia-noite e organizo meus discos", de Carlos Bernardes Costa,
postado numa Terça-feira do dia 28 de dezembro de 1.991, às 18:07)

 
 

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