HISTÓRIA RODRIGUEANA
Neyza Prochet
 
 

Chamava-se Ademilde. Mais do que sorte, o nome era sina, história repetida, vezes sem conta, pela avó paterna nos encontros de família. Filho, nora, netos e agregados ouviam em silêncio impotente, como haviam ouvido desde a primeira vez, o vaticínio trombeteado de Dona Carmem:

-Se for menina, é minha. Vai ser Ademilde, como o anjinho.

O anjinho era a filha natimorta da matriarca. A perda trágica da primogênita e o nascimento, num parto dificílimo, um ano depois, de Leôncinho, pai de Ademilde, acabara por destroçar-lhe as partes íntimas, assim ela dizia. O acontecido determinou em Dona Carmem a opção de um casamento casto, decisão unilateral, do qual o falecido Major Leôncio teve a felicidade de escapar morrendo de uma queda de cavalo, não muito tempo depois.

O filho sobrevivente, criado em regime de chora quem pode, obedece quem tem juízo, nunca fez frente à mãe, paralisado pela culpa de ter-lhe causado um dano irreparável, fato que Dona Carmem sempre cuidou de não deixá-lo esquecer.

O casamento de Leôncinho com uma moça tímida do interior não alterou em nada a ordem familiar. Dona da casa e do dinheiro, diante da primeira gravidez da nora, Dona Carmem aproveitou a oportunidade oferecida. Apropriou-se não apenas do nome da menina, como a destituiu de pais assim que a viu livre da barriga materna. Dizia a quem quisesse ouvir, referindo-se ao filho e à nora, pateticamente reduzidos ao lugar de reprodutores:

- Esses dois, de bom, me fizeram a menina. Agora, crio eu o meu anjinho.

Dona Carmem dedicou-se de corpo e alma ao seu anjo. As roupas da menina eram feitas pessoalmente por ela ou pela costureira da família, uma senhora viúva que contornava a penúria com os dons da agulha. Era ela quem determinava feitio, cor e acabamento, não aceitando opinião diversa de quem quer que fosse. O colégio de freiras, tradicional, era o mesmo que o anjinho teria estudado se viva estivesse. As aulas de música e bordado, oferecidas por amigas de infância de Carmem eram como as escalas canhestramente dedilhadas pela menina, monótonas e repetidas. Ademilde a tudo obedecia, menina pálida e quieta.

Os irmãos de Ademilde, livres da sorte de anjos, soltavam pipas, jogavam bola, brigavam, brincavam descalços no vasto quintal da casa no subúrbio, enquanto Ademilde aprendia a bordar em linhas de seda matizada alvos lençóis de linho.

Do nome aos cuidados, Ademilde teve o que a falecida criança teria. Cada gesto da menina ou aprendizado recebido era acompanhado de comentários sobre se o anjinho faria ou não faria tal coisa. Destituída dos pais, identidade e vontade aparentes, Ademilde cresceu.

Mal completados os dezessete anos, para orgulho das freiras e da avó, ganhou uma bolsa de estudos de um grande curso de vestibular. A turma especial de Medicina embora longe de casa, na zona litorânea da cidade, era uma oportunidade boa demais para ser recusada. A avó concordou antevendo a neta famosa e doutora, confiando que sua influência se estenderia além dos limites do subúrbio.

Todos os olhos são iludíveis. Até mesmo os olhos de Dona Carmem.

Ainda no primeiro mês de aula, Ademilde apaixonou-se por Rafael, lindo como um anjo esculpido em esteróides, marcando passo há anos no cursinho para não perder a mesada paterna, a dificuldade do concurso mascarando o empenho inexistente.

A total indiferença do namorado à matrona, o futuro dúbio e o fascínio evidente despertado em Ademilde foram suficientes para que a oposição se instalasse:

-Este rapaz não é pra você. Acaba com o namoro.

Ademilde chorou, pediu, implorou, desesperou. Diante do veto implacável da avó, pela primeira vez, não recuou nem transigiu, não sucumbiu às ameaças de infarto nem aos castigos, a paixão inquebrantável do primeiro amor dando-lhe forças. Descobriu-se outra, não anjo, mas mulher com querer próprio. Sentia como se tivesse ficado a vida inteira passando pelo que não era, como um bichinho que se esconde igualando-se ao ambiente, no talento instintivo de sobreviver ao predador.

Ademilde fugiu de casa uma, duas, três vezes. O pai, a mando da avó ia buscá-la à força, onde estivesse. Entre uma fuga e outra, a gravidez. Foi morar com Rafael na casa dos pais dele, buscando ela também seu sonho de anjo.

Dona Carmem, na manhã em que viu a neta sair de casa com as malas e o ventre cheios, trancou-se no quarto da menina, pelo resto do dia. O filho e a nora, aflitos com a demora, temendo o pior, arrombaram a porta do cômodo. Encontraram a velha mergulhada em frangalhos de vestidos, pedaços de partituras e tiras de linhos. Com os olhos vítreos, rasgando mecanicamente cada peça do guarda roupa, Carmem repetia sem parar o epíteto que lhe escorria em baba pela boca:

- Assassina! Assassina!

 
 

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