UM TIRA DE CORAÇÃO MOLE
Luís Valise
 
 

Ele pensou nela como todos os dias, ao acordar. Ficou por alguns minutos debaixo das cobertas, imaginando como seria se ela agora estivesse ali ao lado, o corpo quente e macio. Não é fácil, quando se passou dos trinta, viver pensando na garota que cresceu algumas casas depois da sua, e em todas as chances que você teve pra dizer que era apaixonado por ela, tendo deixado passar todas essas chances, e mais algumas. Todos diziam que ele tinha sorte com as garotas, mas ele sabia que tinha apenas talento. Se tivesse sorte, pensou mais uma vez antes de sair da cama, não estaria acordando sozinho, não senhor, a garota estaria ali, deitadinha ao seu lado, esperando ser acordada com um beijo na nuca, um cheiro no pescoço, uma encoxada matinal. Mas ela estava casada com outro.

Chegando na delegacia, passou pelo quadro de avisos e buscou sua escala: Delta 3. Não gostava quando era escalado para a Delta 3, o trabalho era sempre perigoso, embora os parceiros fossem os mais experientes. A equipe não era fixa, seus componentes variavam para evitar formação de panelinhas e corrupção. Foi direto para a sala de conferência, onde era feito o planejamento da ação do dia. Elias, Giovanni, Flávio, Mauro e Conceição só esperavam por ele para iniciar o plano de trabalho. Sobre uma grande mesa retangular um mapa da cidade, ao redor do qual os homens iniciaram discussão sobre rotas e atalhos. Ele pegou um copinho de plástico, encheu de café preto, e procurou acompanhar o que era discutido, sem dar palpites. Sua função no grupo era a de atirador, capaz de acertar a cabeça de um homem em movimento a cinqüenta metros. Nem sempre era preciso atirar, quando chegavam a bandidagem tremia ao ver os brutamontes vestindo camisetas pretas com a cabeça de um tigre amarelo desenhado no peito. Era a turma da pesada, conhecidos no submundo pelo apelido de "vietcongues". Só resistiam os que tinham cheirado muito, ou os que não tinham ninguém pra dividir o desespero daquela vida. Ele não estava gostando nenhum pouco do que ouvia: um alcagüete entregara o esconderijo de um traficante de médio porte, conhecido como Chinezinho, famoso por atirar primeiro e perguntar depois, e ela morava ali perto. Prestou mais atenção ao plano de ataque.

A maternidade deixara-a mais roliça. Protegido pela película escura que cobria os vidros do carro, ele às vezes parava nas proximidades da casa dela e via quando ela saía para levar o casal de filhos à escola, ou quando ia ao supermercado, ou a qualquer outro lugar. Seguia-a com o carro a uma distância segura, ouvindo sempre o mesmo CD do Roberto Carlos, cantando "Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer...". Ela usava o cabelo bem curtinho, num estilo "água, shampu e pente" bem casual, e isso a rejuvenescia, sua menina, sua moleca, seu bem-querer. Um dia chegou a sair do carro e entrou no supermercado. Seguiu-a por entre corredores, pilhas e prateleiras, sem que ela notasse sua presença. Era seu anjo-da-guarda. Na volta teve vontade de ajuda-la com os sacos de compras, mas contentou-se com a música, "... entre no meu carro, e na estrada de Santos você vai me conhecer...". Quando ela entrou na casa de portão baixo, bem-cuidada, ele pensou que ela estava melhor ali do que estaria com ele, com seu baixo salário e algumas mortes na consciência.

Apenas uma vez criou coragem e ligou. Ela apenas ouviu seu "alô?", ficou um tempo em silêncio, ele repetiu "alô?", ela disse "O quê você quer?". Não estava brava, apenas preocupada. "Eu quero falar com você". Outro momento de silêncio. "Acho que já não temos nada pra dizer, você já disse tudo, e é só". Ele sentiu um aperto no coração "Eu estava errado. Quero me desculpar". Ela pensou antes de responder. "Tarde demais. Não torne a ligar". Ele disse "Ainda te amo", mas ela desligou na metade, e ficou um tempo junto ao telefone, olhos fechados, a volta no tempo, o grande amor, mas muito louco, impossível. Durante o jantar, naquela noite, o marido perguntou se acontecera algo, ela estava meio estranha. Sorriu e mentiu com eficiência, "Nada, querido, só um pouco de cansaço. Precisamos ir para a praia". Ele só podia mesmo acreditar, "Claro, claro, nas férias das crianças".

As duas viaturas negras, reluzentes, saíram da delegacia. Três homens em cada uma. Ele ficou com o Flávio e o Conceição. Flávio dirigia, Conceição levava no colo uma prancheta com o rascunho do plano, e ele ia no banco de trás, um fuzil R-15 sobre os joelhos, e um revólver cano longo reforçado Magnum. Seis tiros, seis pequenas bombas, grandes rombos no peito da malandragem. Seguiam para o bairro em que ela vivia. Sentiu falta do CD do Roberto, começou a assobiar baixinho "... você vai pensar que eu não gosto nem mesmo de mim, e que na minha idade só a velocidade anda junto a mim...". O Conceição falou sem olhar para trás: "Conferir armamento, estamos quase chegando." Ele pegou o R-15, tirou o pente, conferiu os cartuchos dourados. Tirou o Magnum do coldre junto ao peito, fez saltar o tambor, as cápsulas estavam OK. Seguiu assobiando "... preciso de ajuda, por favor me acuda, eu vivo muito só...". O rádio da viatura deu um estalo: " Tigre um chamando tigre dois, câmbio". Conceição pegou o microfone, "Tigre dois na escuta, câmbio." Quem falava era o Elias, líder da equipe: " A rua está quieta, ninguém por perto. Parem na segunda esquina de acordo com o plano. Câmbio." Viram a viatura comando parada antes da casa-alvo. Passaram direto, viraram a esquina e pararam, para cortar eventual fuga pelos fundos. Ele viu que o carro do marido dela estava na garagem. Por quê não estava trabalhando? Ficaram dentro do carro esperando instruções do comando. O assobio agora mais baixo "... se acaso numa curva eu me lembro do meu mundo, eu piso mais fundo, corrijo num segundo, não posso parar...".

Dentro de casa ela acabava de arrumar as malas. As crianças, excitadas, separavam brinquedos, bóias, pranchas. O marido terminava de agendar pagamentos no computador, e hesitava em levar ou não o revólver, os boatos de roubos em casas de praia eram cada vez mais fortes. Desligou o computador e foi conferir a arma. Fazia tempo que não pegava nela, nem para limpar. Afastou a cortina da janela do quarto de casal, e viu o revólver pendurado num fio de nylon preso no trilho da cortina, no alto. Esconderijo à prova de ladrões, crianças e até mesmo de empregadas. Esticou o braço, tirou a arma do gancho, e examinou-a. Empoeirada. Guardou-a no bolso da bermuda e foi para a cozinha. Pegou um pano seco e limpou o Taurus preto cano médio .32. Em seguida tirou as balas, pegou a latinha de óleo Singer e pingou uma gota nas junções das partes móveis. Tornou a carregar a arma e, hesitante, achou melhor não leva-la. Meteu-a no bolso e foi de volta ao quarto. A mulher dobrava roupas na mala. Passou a mão na bunda dela e brincou "Quero tudo queimadinho, hein?" Ela riu e disse "Difícil. Branca desse jeito...". Ela era mesmo branquinha, pele delicada, usava protetor solar fator máximo possível.

O rádio estalou de novo: "Tigre dois, iniciar aproximação. Flávio permanece na viatura, motor ligado, câmbio". Conceição confirmou "Tigre dois saindo no ataque, câmbio". Conceição saiu na frente, rente à parede. Eu fui atrás, R-15 na mão. A casa dela era logo à frente, o assobio na cabeça "... da estrada de Santos, onde eu tento esquecer um amor que eu tive, e vi pelo espelho na distância se perder...". Conceição levantou a mão esquerda em comando de "alto". Paramos justamente no muro da casa dela. Tigre um também se aproximava do alvo, pela outra extremidade. O fone de ouvido deu um estalinho, a voz do Elias sussurrou "Pula esse muro e vai pelo quintal". Conceição virou a cabeça e fez sinal para que eu pulasse o murinho. O muro da casa dela! O carro do cara na garagem! Achei melhor abrir o portãozinho. As dobradiças estavam secas, o puto rangeu. Entrei devagar, R-15 nas mãos, coração pulando atrás do Magnum. Pulando por todos os motivos. Comecei a andar na direção do carro. Depois entraria pelo corredor lateral e pularia para o quintal vizinho. Conceição seguiu andando rente à parede.

Eu estava usando um gorro preto, e levava fones de ouvido com microfone junto aos lábios. Acho que foi por isso que ela não me reconheceu. Ouvi um grito de susto. Não muito alto. Mas todo mundo também ouviu. Ela estava na porta da sala segurando uma mala de viagem. Ficou paralisada, com a boca aberta. Pus o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio. Era tudo o que eu podia pedir naquela hora. Conceição também ouviu o grito. O Elias, e o Mauro, também. Então era possível que o Chinezinho também tivesse escutado. A casa tinha que cair agora! Passei por ela a caminho do corredor, o dedo ainda junto aos lábios, "... mas se o amor que eu perdi eu novamente encontrar..." passei o braço e a cabeça sob a alça do R-15 e deixei-o cruzado nas costas. Eu precisava saltar sobre o muro, o fator surpresa, a pressa, não vi o marido chegando por trás dela, a arma na mão, segurei-me na borda do muro, peguei impulso e saltei, apoiando a barriga. Joguei a perna direita esticada sobre o muro, consegui firmar o corpo. Peguei o cano do R-15 e puxei-o para a frente. Ouvi o grito do Conceição: "Cuidado!", olhei em frente procurando pela cara redonda do Chinezinho, o dedo no gatilho do R-15, mas o "click" veio por trás. Ouvi uma arma sendo engatilhada. Acho até que ela ainda gritou "Não!", mas não tenho certeza. Senti uma pancada atrás da orelha, e um líquido quente descendo pelo pescoço. Perdi a força na perna direita, e comecei a escorregar de volta para o quintal dela. Assim eu não poderia ver o Chinezinho se aproximando! Tentei me segurar com as mãos, o R-15 caiu no chão. Ainda bem que ainda tinha o Magnum. Eu sabia que ia cair todo sem jeito, talvez até me machucasse. Um resto de assobio, "... as curvas se acabam, e na estrada de Santos não vou mais passar...". Claro que aquilo só podia ser uma brincadeira. Tentei falar no microfone "Tigre um, tigre um, que porra de brincadeira é essa?", mas acho que não consegui, porque eu estava caído no chão, junto ao muro, uma poça de sangue se formando diante dos meus olhos, "... não, não vou mais passar...".

 
 

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