ATRÁS DA PORTA
Bárbara Helena
 
 

Ela nunca pronunciou a palavra que traz mau agouro. Mas a mãe dizia que nasci sem sorte. E olhava com tristeza para meu cabelo amarelo que nada tinha a ver com as melenas grossas e escuras da família. E para minha pele branca de aipim cozido enquanto as manas tem a cor do tacho de bronze e olhos de jabuticaba. Os meus são verdes e desbotados.

Meu pai nunca suspeitou desta espiga de milho surgida no melado. Ou preferiu esmagar a dúvida no trabalho - afinal, mulher mais honrada estava para nascer. Honrada e rezadeira.

Minha mãe tem uns três paraísos garantidos se para isto orações contarem. O terço branco ficou amarelo de ser debulhado e o missal perdeu páginas que não fizeram falta. Ela rezava de ouvido, sabia tudo de religião, menos caridade cristã e perdão.

Eu não era bonita e me lembrava sempre disto - faltavam curvas e não sabia sorrir enviesado para os rapazes. Seca e sem graça, me escondia nos desvãos com medo de ser percebida. Vivia de favor, para não ser cobrada.

A família agradecia esta vocação para a sombra que limitava o alcance da sua vergonha, prova viva de que minha mãe falhara em povoar o mundo de belas e honestas parideiras como ela. Todas procurando homem e local para rezar o terço em família.

Com o tempo fiquei perita em disfarces - bicho-folha me colava às cortinas, sumia nas paredes, me perdia nos galhos de jasmim. Bastava estar ali sem cobranças, tolerada por ser, estranha ao ninho. Não precisava ir á missa, ou beijar mão de padre. Fugi do catecismo e suspeito que todos respiraram aliviados. Eu era a senhora ninguém, a culpa de todos, borrão maculando a perfeição da graça.

Não freqüentei banco de escola, aprendi a ler sozinha. Tudo que caía nas mãos, devorava. Descobri os livros na Biblioteca Pública, único lugar onde ser ninguém era regra, onde o silêncio que me cercava parecia bem-vindo. Nas páginas da fantasia eu era muitas e podia sumir sem sofrimento.

Depois comecei a escrever. Folhas soltas que roubava de cadernos, com lápis desaparecidos em fendas, construindo um mundo. Nele, a heroína loura, pálida e magra vivia cortejada por um desconhecido. E não havia lugar para as filhas do melado. Meu príncipe era monarca dos diferentes como eu.

Emagreci, me tornava cada vez mais diáfana. Já não podia mesmo ser distinguida das paredes brancas, ou dos galhos verdes da amoreira onde me sentava para ler. Ninguém me via ou se importava.

Minha mãe, justiça seja feita ao seu medo da ira divina, me chamou algumas vezes para almoçar ou jantar, mas eu estava longe. Muito além de sua voz dura de beata.

Meu pai agradeceu aos deuses o sumiço do fruto da sua desconfiança. Única mácula na vida perfeita daquela mulher sem defeitos. A vida se tornou mais leve para todos.

Eu passeava pela casa sem ser vista, livre, como um fantasma vivo.

Um dia me atrevi a tentar outras paragens, em direção ao lado rico da cidade. Percorri jardins bem cuidados, entrei por vão de portas, pesquisei salões, usei estantes alheias, comi do bom e do melhor.

Até que me descobriram.

Minha mãe deve ter razão. A única pessoa que nunca deveria ter me visto, o homem mais bonito da cidade. Nem sei dizer o motivo. Talvez porque me demorei olhando seu rosto perfeito, adormecido na grande cama escura, talvez porque arranjei pretextos para voltar à casa do portão verde onde ele morava. Talvez porque o amor me tornou visível.

Ele me viu, riu pra mim, não desdenhou meu cabelo amarelo e alisou suas pontas lisas. Não fugiu dos meus olhos de água, mas se mirou neles até eu me perder. E em vez de desviar as mãos da minha carne branca, se atirou nela como em um mar de espumas.

Eu me afoguei, ele se afogou. Perdeu a razão e o dinheiro.

Voltei a ser invisível, apenas para ele. Descobri que sou boa em fazer sumir.
Hoje tenho um bordel na estrada reta. Crio fantasmas para me divertir, juntei mulheres de todo canto que me tornaram rica. Não amo ninguém, nem apareço para todos. De vez em quando apareço em noites de lua e pego algum homem mais apetitoso. Levo para meu livro de histórias no reino dos diferentes. O príncipe nunca achei, mas considerando tudo, minha mãe estava errada. Eu tenho sorte. Ou talento.

 
 

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