Ela
nunca pronunciou a palavra que traz mau agouro. Mas a mãe dizia
que nasci sem sorte. E olhava com tristeza para meu cabelo amarelo que
nada tinha a ver com as melenas grossas e escuras da família. E
para minha pele branca de aipim cozido enquanto as manas tem a cor do
tacho de bronze e olhos de jabuticaba. Os meus são verdes e desbotados.
Meu pai nunca suspeitou desta espiga de milho surgida no melado. Ou preferiu
esmagar a dúvida no trabalho - afinal, mulher mais honrada estava
para nascer. Honrada e rezadeira.
Minha
mãe tem uns três paraísos garantidos se para isto
orações contarem. O terço branco ficou amarelo de
ser debulhado e o missal perdeu páginas que não fizeram
falta. Ela rezava de ouvido, sabia tudo de religião, menos caridade
cristã e perdão.
Eu não era bonita e me lembrava sempre disto - faltavam curvas
e não sabia sorrir enviesado para os rapazes. Seca e sem graça,
me escondia nos desvãos com medo de ser percebida. Vivia de favor,
para não ser cobrada.
A família agradecia esta vocação para a sombra que
limitava o alcance da sua vergonha, prova viva de que minha mãe
falhara em povoar o mundo de belas e honestas parideiras como ela. Todas
procurando homem e local para rezar o terço em família.
Com o tempo fiquei perita em disfarces - bicho-folha me colava às
cortinas, sumia nas paredes, me perdia nos galhos de jasmim. Bastava estar
ali sem cobranças, tolerada por ser, estranha ao ninho. Não
precisava ir á missa, ou beijar mão de padre. Fugi do catecismo
e suspeito que todos respiraram aliviados. Eu era a senhora ninguém,
a culpa de todos, borrão maculando a perfeição da
graça.
Não freqüentei banco de escola, aprendi a ler sozinha. Tudo
que caía nas mãos, devorava. Descobri os livros na Biblioteca
Pública, único lugar onde ser ninguém era regra,
onde o silêncio que me cercava parecia bem-vindo. Nas páginas
da fantasia eu era muitas e podia sumir sem sofrimento.
Depois comecei a escrever. Folhas soltas que roubava de cadernos, com
lápis desaparecidos em fendas, construindo um mundo. Nele, a heroína
loura, pálida e magra vivia cortejada por um desconhecido. E não
havia lugar para as filhas do melado. Meu príncipe era monarca
dos diferentes como eu.
Emagreci, me tornava cada vez mais diáfana. Já não
podia mesmo ser distinguida das paredes brancas, ou dos galhos verdes
da amoreira onde me sentava para ler. Ninguém me via ou se importava.
Minha mãe, justiça seja feita ao seu medo da ira divina,
me chamou algumas vezes para almoçar ou jantar, mas eu estava longe.
Muito além de sua voz dura de beata.
Meu pai agradeceu aos deuses o sumiço do fruto da sua desconfiança.
Única mácula na vida perfeita daquela mulher sem defeitos.
A vida se tornou mais leve para todos.
Eu passeava pela casa sem ser vista, livre, como um fantasma vivo.
Um dia me atrevi a tentar outras paragens, em direção ao
lado rico da cidade. Percorri jardins bem cuidados, entrei por vão
de portas, pesquisei salões, usei estantes alheias, comi do bom
e do melhor.
Até que me descobriram.
Minha mãe deve ter razão. A única pessoa que nunca
deveria ter me visto, o homem mais bonito da cidade. Nem sei dizer o motivo.
Talvez porque me demorei olhando seu rosto perfeito, adormecido na grande
cama escura, talvez porque arranjei pretextos para voltar à casa
do portão verde onde ele morava. Talvez porque o amor me tornou
visível.
Ele me viu, riu pra mim, não desdenhou meu cabelo amarelo e alisou
suas pontas lisas. Não fugiu dos meus olhos de água, mas
se mirou neles até eu me perder. E em vez de desviar as mãos
da minha carne branca, se atirou nela como em um mar de espumas.
Eu me afoguei, ele se afogou. Perdeu a razão e o dinheiro.
Voltei a ser invisível, apenas para ele. Descobri que sou boa em
fazer sumir. Hoje
tenho um bordel na estrada reta. Crio fantasmas para me divertir, juntei
mulheres de todo canto que me tornaram rica. Não amo ninguém,
nem apareço para todos. De vez em quando apareço em noites
de lua e pego algum homem mais apetitoso. Levo para meu livro de histórias
no reino dos diferentes. O príncipe nunca achei, mas considerando
tudo, minha mãe estava errada. Eu tenho sorte. Ou talento.
|