ATOS E INTENÇÕES
Suzana Garcia
 
 

Helena nem sequer importou-se com tiroteio, acostumada que estava, imaginava fogos de artifício, de boas vindas, todas as vezes que conseguia sair ilesa do túnel. Cidade maravilhosa, cartão postal da violência, retrato de uma vida sem lei. Sem lei? Não, é claro que há lei. Há lei sim, dos distribuidores de falsos sonhos, armadilhas químicas que geram a dependência nos menos desavisados. Há lei sim, dos "di menor", homens camuflados de meninos driblando a sociedade. Há lei sim, resultado das "não leis", atos e intenções nunca aprovadas no congresso.

Helena estava cansada, de surpreender-se com os tiros, com a correria, com os gritos, com os ônibus em chamas, com as notícias nos jornais.

Helena estava cansada de uma escala de valores que só os governantes entendiam.

Helena tinha absoluta certeza de que a falta de cultura sempre foi o maior causador das mortes, em tiroteios, nos hospitais, na periferia. Mortes físicas, emocionais, psicológicas, intelectuais, ecológicas e culturais.

Helena viu a mãe de um garoto de quatro anos que caiu num bueiro sem tampa porque o mesmo havia sido roubado. Viu um casal de indígenas com duas filhas "especiais", precisando de auxílio médico, a mercê de discussões governistas. Viu cento e sessenta e cinco mil candidatos inscritos a 130 cursos para universidades gratuitas. Viu a receita federal em greve e posteriormente atividade na chamada "operação tartaruga". Viu um posto médico municipal que atende no décimo andar e com o elevador quebrado. Viu um massacre de toda uma família que voltava do Japão com cinco mil dólares e por isso foram torturadas e mortas.

Helena viu as negociatas e acordos no Congresso para minimização "das penas" dos congressistas envolvidos em , digamos, apropriações indébitas do dinheiro público. Helena viu um pequeno criador dar ração na boca de um boi quase desfalecido e caído no pasto seco. Helena viu crianças cheirando cola. Helena viu mulheres grávidas queimando crack. Helena viu um padre se recusando a dar a primeira comunhão de graça. Helena viu a Igreja não abrir mão de três reais para os taxistas entrarem na Basílica e desembarcar os fiéis.

Helena viu um menino retido numa loja por bandidos e tentando acalmá-los ofereceu o único dinheiro que tinha uma nota de cinco reais. Helena viu adolescentes que, na escola, com a aprovação da professora, experimentaram soda caustica.

Helena não agüentava mais. Helena saiu do túnel, saiu do carro, abriu os braços e agradeceu os fogos de boas vindas. Seus nervos não são de aço.

Helena foi enterrada hoje.

 
 

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