FUGINDO PRA DENTRO
Luís Valise
 
 

Aquilo não podia acabar bem. "Fuja, fuja, corra, sua louca!", mas ela ignorava o que dizia a razão e deixava-se levar pelos instintos, enquanto ouvia a conversa do homem de rosto cansado, sua voz baixa, olhos exaustos. Ouvia, e deixava que ele segurasse sua mão sobre a mesa de madeira velha, encostada junto à parede coberta por azulejos antigos. A mão dele era grossa e pesada, com cicatrizes, e unhas escurecidas pelo fumo. O punho era forte como um pé de romã, e no antebraço a tatuagem de um nome de mulher lembrava portos e navios. Ele dizia que ela devia tomar mais cuidado, não podia andar por aí sozinha desse jeito, que os perigos buscavam justamente as almas desacompanhadas, e seus instintos diziam que ela podia confiar no homem, e que ao seu lado nada de ruim lhe aconteceria. Ao lado dele não se sentia só.

A quitinete era minúscula, o sofá era velho e desbotado, e ela estava tendo um pesadelo: era um gato enrolado em arame farpado. Não podia se mexer. Não podia nem mesmo encher os pulmões de ar, apenas um respirar sub-reptício, os espinhos de metal à espreita, qualquer movimento e sua carne seria dilacerada. A angústia foi aumentando, e quando estava a ponto de miar (na verdade, de gritar) acordou molhada de suor, e manteve-se encolhida até ter certeza de que não havia outras farpas que não as da sempre e mesma solidão, não menos cruéis e doloridas. Abriu os olhos e compreendeu que já era dia, de sol, e sábado, o que não era senão mais um de tantos inúteis que se sucediam.

O banho automático, o cheiro de sabonete que não seria sentido, o pão com queijo, o café preto, o cigarro. Abriu a janela do sala-quarto-cela. Ligou a TV, em busca de companhia. O anúncio do filme premiado. Por que não? Vestiu roupa para dia de sol. Quase saindo, voltou ao banheiro e pintou os lábios. Nunca se sabe.

Cinema quase vazio, escolheu lugar isolado. Quando as luzes se apagaram, um homem entrou na mesma fileira, e sentou-se quase junto. Uma poltrona antes. Não teve coragem para trocar de lugar. Quando o filme começou ele sentou-se junto dela. Seus braços se tocaram, ela afastou o corpo para o lado. Ela viu quando o braço do homem se moveu no escuro, e a mão fria pousou em sua perna. Ela cruzou as pernas, e o movimento fez subir mais a saia. Ele começou a alisar e apalpar sua coxa. Ela inclinou o corpo ao máximo para longe, ele forçou a mão por entre suas coxas. De repente, um som parecido com um coco caindo na areia, e a cabeça do homem pendeu para a frente, o queixo junto ao peito. Sua mão escorregou para perto do chão. Ela ouviu uma voz comandar "Vamos!". Levantou-se como um autômato, sentiu que seguravam seu braço por trás e a conduziam para fora da sala escura. Tremia muito. Teve medo de desmaiar. Viu o homem na claridade, não teve forças para escolher um caminho. Deixou-se levar. No bar, na mesa de madeira queimada de cigarros, um copo de cerveja; aos poucos voltou a lembrança do soco violento na cabeça do molestador. Tentou imaginar o impacto daquela mão grossa e pesada, com cicatrizes, guiada pelo punho forte como um pé de romã, o nome tatuado na casca riscada por veias escuras. Um cheiro de porto e navios velhos ondulava ao redor da mesa. Ele perguntou se ela era solteira. Ela sentiu que podia confiar no homem de olhos exaustos,e disse que sim, era solteira, e disse mais, que não tinha ninguém, nem mesmo amigos, e que estava feliz por ter sido protegida por ele num sábado de sol. Mas queria tanto ter assistido ao filme, pena que aquele cafajeste tivesse interrompido os poucos momentos em que conseguiria estar fora de si mesma. O homem apertou suavemente sua mão, e disse que poderiam voltar na próxima sessão. Ela balançou a cabeça, concordando, e passou a ponta dos dedos sobre as unhas escurecidas. Ele tinha a barba crescida de alguns dias, e sua camisa tinha o colarinho puído. "Fuja, fuja!". Voltaram ao cinema.

Ela entrou de braço dado com ele. Assim era melhor, ela quase tinha esquecido. Sentaram na mesma fileira em que ela estivera antes. Ninguém por perto. As luzes se apagaram, o filme começou. Ela cruzou a perna. A pele clara brilhava na penumbra. Ela tomou a mão pesada e ficou alisando as cicatrizes. Depois pousou-a sobre sua coxa alva. Sentiu um arrepio quando a mão do homem se insinuou sob a saia. Descruzou as pernas, e deixou que ele sentisse como ela era macia. Ela ouviu a voz quente do homem pedindo sua boca vermelha: "Dá essa boca vermelha pra mim." Ela deu, e sentiu a boca do homem, seu cheiro de cigarro e seu gosto de cerveja. No meio do beijo ela ainda pensou "Fuja, fuja, corra, sua louca, isto não vai acabar bem!", mas ela não agüentaria outra noite sozinha na quitinete abafada, sua vida enrolada em arame farpado. Por isso, ela convidou o homem "Vamos para a minha casa?", e esperou um tempo enquanto ele pensava, examinando seu rosto à luz da tela. Quando enfim ele respondeu, ela ficou contente, mesmo com aquela resposta "Eu quero que você saiba que sou procurado pela polícia. Isso pode acabar mal." Ela não se importou.

Domingo também amanheceu com sol. O sofá aberto tomava quase todo o espaço. Ela sentou-se e buscou com os pés o par de chinelos velhos, mas seus pés se assustaram ao esbarrar na arma pesada e fria. Ela pegou a grande automática e pôs sobre seu travesseiro. O homem dormia, indefeso. Sua mão pousada sobre o lençol parecia mais grossa, mais pesada. Ela afastou uma súbita sensação de pena do homem. Agora ela precisava ter nervos de aço.

 
 

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