A GOTA D'ÁGUA
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Jorge Costa Filho
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Toca o telefone. Era Marenilda cancelando o encontro agendado pro horário do almoço. Teria que aguardar até segunda-feira para dar aquela rapidinha no intervalo do expediente, porque o marido da manicure, pedreiro de primeira linha, estava fazendo reforma em uma residência vizinha, então iria almoçar em casa. Nem por isso a sexta-feira, 13 de Agosto, estava perdida. Gervásio, como não era ligado em superstições, tratou de espairecer, embarcando no seu "quase zero" do ano, rumo a um restaurante bem aconchegante, onde iria almoçar, ainda que sozinho, e bebericar umas lourinhas, ainda que não muitas, pois a tarde e seu resto de expediente despontavam no horizonte. Seguia tranqüilo, quando após um cruzamento onde o verde sorria no semáforo, um destrambelhado que "cagou" pro vermelho na transversal, colheu em cheio o seu possante, e o saldo, além de algumas costelas quebradas, foi perda total do seu veículo, que por descuido de sua secretária, como viera a saber mais tarde, estava com o seguro devidamente atrasado. Alguns dias após desconfortável estadia num infame hospital público, para onde foi levado pela equipe da defesa civil que o socorreu, e onde deu entrada praticamente como indigente, pois teve furtados no local do acidente, além do celular, a carteira com dinheiro e todos os documentos, estava liberado para ir pra casa, pro escritório ou pra onde quisesse ir, não sem antes passar, é claro, num barzinho qualquer pra comemorar o simples fato de estar vivo. Tomou um táxi na porta do hospital, com destino a sua casa e sua vidinha pacata de sempre. Quando se lembrou que estava sem dinheiro, teve a péssima idéia de propor ao motorista de praça que o levasse até o seu destino, onde ele então lhe pagaria a corrida. Mas, o destino quis por bem que o taxista não engolisse a sua história e o fizesse desembarcar ali mesmo, na entrada de uma das favelas mais perigosas da cidade, onde alguns instantes após, teria início intenso tiroteio entre a quadrilha local e policiais de passagem pelo local, e o exato local onde a bala perdida atingiu o Gervásio era dos menos apropriados, e o cara, que tinha saco de Jó, teve pouco tempo pra agradecer a Deus pelo tiro que pegou só de raspão na sua bunda, pois logo se viu enquadrado por um monte de homens uniformizados que diziam ser ele um tal de "Kabala", traficante perigoso e procurado, mal-entendido agravado pela ausência total de documentos que o pudessem identificar e atestar quem era, ou melhor, quem não era. Chegou à delegacia moído de tanto apanhar, pois durante o trajeto, quanto mais ele alegava não ser quem eles pensavam, mais era massacrado dentro da viatura. Três semanas após sua prisão, que a essa altura, lhe parecia ter ocorrido há três anos, período no qual amargou total solidão, sem direito a visitas, nem de sua mulher ou qualquer outro familiar, tampouco de nenhum colega do trabalho, se viu diante de um delegado desculposo que lhe informava ao mesmo tempo sobre a captura do verdadeiro "Kabala" e sua conseqüente liberdade. Como saíra da delegacia por volta das duas da tarde, resolveu passar no trabalho, senão para cumprir o restante do expediente, do qual já sentia saudade após quase um mês de férias forçadas, pelo menos para dar um alô pro pessoal e dizer que já estava em condições de retornar ao batente. Lá chegando, seu chefe lhe chamou para uma conversa cheia de curvas e rodeios, na qual lhe deixou claro que todos ali estavam cientes do equívoco que a polícia cometera e que, em momento algum, pairou qualquer dúvida a respeito do seu caráter, bem como, todos sabiam que aquela história não passara de um incrível viés do acaso. De mais a mais, era considerado excelente profissional e ótimo companheiro de labuta, afirmações essas que fizeram Gervásio sorrir após tantos dias de sufoco. Aí vieram os outros quarenta e cinco minutos daquela partida indefinida, no decorrer da qual, o chefe começou a tocar a bola pros lados, meio assim de trivela, e argumentar que, como havia passado muitos dias ausente, precisaram contratar uma pessoa para executar o seu serviço; E como a data do seu retorno era indefinida, ficou definido que o interino teria que ser efetivado para que pudesse assumir todas as responsabilidades inerentes ao cargo, ou seja, o reserva passaria a titular. Ainda havia o esdrúxulo argumento de que, apesar de sua atestada inocência e comprovada probidade, todo aquele episódio poderia comprometer a boa imagem da empresa perante sua seleta e exigente clientela, o que tornava sua permanência no quadro, de certo modo, insustentável. Conclusão: Da forma mais aprazível, mais delicada e mais bem explanada possível, o Gervásio estava sendo demitido. Como toda e qualquer porta é serventia de toda e qualquer casa, após cruzar a do escritório, o executivo marchou ordinariamente rumo à primeira choperia que encontrou pela frente, e fez um brinde ao privilégio de saber que não poderia ser demitido do cargo de chefe do seu lar, próxima parada. Ao chegar em casa, mais uma surpresa impactante: Deparou-se, ao transpor a soleira da porta de seu quarto, com um casal apaixonado, que de tão engalfinhado sobre a cama pela qual seu corpo há dias ansiava, demorou um certo tempo para definir que se tratava de sua mulher e seu melhor amigo. Ela, boquiaberta, muda e trêmula perante sua repentina aparição, como se visse um fantasma que não esperava rever nessa encarnação; o amigo (?), apressado em se justificar, apresentando alguma desculpa plausível, que pelo menos, servisse pra quebrar o gélido silêncio: - Olha, Gervásio, as coisas não ocorreram do modo como aparentam. O fato é que não havia previsão de quando você sairia da prisão, e a Vivinete aqui, inconsolável com a sua ausência e toda essa situação... - Florinaldo, poupe as suas tentativas de explicar o que não carece explicação, afinal, amigo é pra essas coisas. Faz o seguinte: Assume a casa, assume a mulher, assume as dívidas, assume tudo, que eu, ó... Vou sumir!!! Nem se deu ao trabalho de arrumar mala ou coisa parecida, saiu com a roupa do corpo e uma idéia na cabeça: Isso tudo pede uma bebemoração! Fim de tarde, Gervásio encostado no balcão de um humilde boteco, tomando mansamente sua mais que merecida cervejinha, quando surge um papo sobre futebol entre uns camaradas à porta da birosca. Havia um mais exaltado entre eles, que evocou do nada o nome de um universalmente conhecido baixinho: - O Romário já era! Não se toca que tá pra lá da hora de encerrar a carreira. Já deu o que tinha que dar. Quando ele entra em campo, o Vasco joga com um homem a menos. Depois de velho, virou perna-de-pau. Agora, deu até pra perder pênalti! Aí o balde transbordou. Gervásio, completamente desfigurado, arremeteu contra o sujeito, agarrando-o pelos colarinhos e conduzindo-o suspenso para fora do botequim, onde desferiu-lhe um direto no queixo, com tanta força que o infeliz estatelou-se inconsciente na calçada. Enquanto o malfadado comentarista esportivo amador era socorrido por seus colegas, o cruz-maltino Gervásio vociferava transtornado e irreconhecível: - Pode me xingar, me bater, me assaltar, me demitir, me prender, me processar, me cornear e tudo o mais que tenha ou não direito mas, pô, falar mal do Romário na minha frente, aí já vai um pouco além da conta, né, irmão... Dito isto, o Gervásio torna a sentar no banquinho giratório em frente ao balcão do estabelecimento, feições já recompostas, e com a voz mais suave e tranqüila que se possa imaginar, pede educadamente ao balconista (flamenguista, diga-se de passagem): - Desce outra bem geladinha, por gentileza. |