A ÚLTIMA PORTA
Beatriz Galvão
 
 

Mais uma vez.

Mastigava aquela carne macia com todas as cáries que lhe pertenciam por direito, ronronando exemplarmente, como todo marido habitualmente deve fazer. Não é que não estivesse disposto a conversar, só não via o porquê de faze-lo durante a única refeição verdadeira do dia. Além, sabia perfeitamente como teria sido o dia de sua mulher: casa, contas, filhos, a sogra que havia ligado...

-Sua mãe ligou.

-Eu sei.

-Como sabe?

-Ela sempre liga. Alguma novidade?

Pausa. Rancorosa. Pergunta estúpida e sem nenhuma novidade. Mas a novidade de hoje é que havia acontecido algo àquela tarde, que a fez explodir por dentro mas, contando, o ineditismo e a tempestade que aconteceram dentro dela passariam sem deixar rastro. Investigou, uma vez mais, a dentição do marido: agora aberta, suja de feijão e ovos mexidos. E aquele ronronar incessante. Disparou:

-Faltou luz, mas era dia.

-O que?

-Você está surdo?

-Não, ouvi perfeitamente. Você disse que faltou luz durante o dia.

-Não, querido. -Após pronunciar a frase, percebera o tom sarcástico que imprimira àquela que fora uma palavra de tanto afeto entre os dois namorados. Incrível como os anos invertem certas semânticas, pensou. -Eu disse que "faltou luz, mas era dia".

-Ah. -Respondeu o marido, sem muita convicção.

Mas isso não explicava o motivo de tantas velas apagadas pela casa.

-Ora, Valéria, você desperdiçou velas durante o dia? Depois pergunta para onde vai o meu dinheiro...

-Nosso dinheiro! Eu também trabalho!

-Trabalha? Então me conta onde tem escondido seu salário... -caçoou o
marido da dona-de-casa.

-Trabalho cuidando das coisas que você não quer ver, que você não quer enxergar. Trabalho para manter funcionando tudo o que você finge ignorar, mas que se parassem, por um só momento que fosse, sua vida desmoronaria, sem dúvida! -e, após um tempo de silêncio total, balbuciou como que para si mesma: -Trabalho para as coisas que nem eu mesma percebia. Até...

até hoje à tarde, ela quis dizer. Mas não pôde.

O marido, intuindo que o desabafo terminara, retomou a comida. O filé, o arroz, o feijão e o ovo já haviam sumido do prato. Restavam os músculos, jogados ao canto. Valéria olhava a cena à sua frente. Disse uma palavra sequer. Nada. Bastava que os olhos falassem, como falaram, suplicando para que o homem puxasse aqueles nervos para si, mastigasse com toda a verdade que pudesse, não negligenciasse nada, nada do que poderia acontecer. Nada do que acontecia ao seu redor. Não disse nada. Mas era apenas o que bastava para que seu amor por ele voltasse mais forte, existisse novamente. Sabia que a única forma de recomeçar, seria se, por livre iniciativa, o homem não negligenciasse nada do que ela lhe oferecia.

Humberto espreguiçou-se, bocejou, arrotou. Finalmente, levantou-se da mesa fechando atrás de si uma porta que jamais se reabriria.

 
 

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