GRAÇA
Beto Muniz
 
 

Foi de certa forma engraçado perceber que nem bem anoitecia e minhas impaciências se iam, espantadas por Graça com suas habilidades de estrela do mar moldando seu corpo ao meu. Ela beijava um beijo de entrega, rendição por inteiro, porém, aos poucos, meio que osmose meio que metamorfose, a rendição se transformava em posse e Graça invadia minha boca ocupando todos os espaços, sugando meus sabores e ofertando apetites sôfregos. De repente nossos tornozelos estavam juntos, encaixados, sem sobras, acelerando vontades e também o coração num descompasso que encurtava a noite. Os ponteiros não se demoravam onde deveriam esperar o instante seguinte, e num átimo seu corpo colava em mim absorvendo todos meus contornos. Nossos joelhos se encostavam, coxas entrelaçavam, barrigas colavam, peitos se uniam e formávamos um só corpo, uma só carne. Existia ainda a consciência do eu, no entanto, meu corpo se tornara outro e estava em queda num poço fundo, caindo, caindo e caindo em estado de graça. A noite passando, imperceptível, e nós distraídos no emaranhado de pernas, braços, línguas, vontades e segredos desvendados. Dividíamos as mesmas pulsações e também os mesmos gozos intercalados por breves intervalos - frágil lucidez - estacionados na quentura aconchegante e úmida entre nossas coxas. Era só eu e ela, estrela do mar, dentro da noite, dentro dum beijo que antes do amanhecer ainda era o mesmo, ininterrupto, pleno.

A graça acabava ao amanhecer, quando nos separávamos feitos troncos de árvores fendidos por raios... Doía sentir, num súbito, Graça arrancando suas partes aconchegadas em mim. Meu corpo resistia, braços e pernas na brincadeira de ficar moldado estrela do mar e ela rude, transformando seu corpo em água-viva. Era então uma pequena medusa, queimando, soltando minhas partes até eu ser novamente sozinho, ardendo, desgraçado, consciência em fogo. Ela expulsava de si as partículas de nós espalhadas pelo seu corpo e a água-viva sobrepujava, enfim, o que restava da estrela-do-mar. Em agonia pelo violento romper de nós, cada qual pendia para um lado com seus suores, cansaços, ofegos e metamorfoses esticando o dia. O tempo voltava a se arrastar, os ponteiros não se importavam mais com onde deveriam estar a cada novo instante e o sol parava no meio do céu zombando minhas impaciências e oferecimentos. Em vão eu ofertava chamegos e espaços vazios na boca para Graça que se ia - água-viva arredia - queimando meus carinhos.

Ao entardecer, ainda arredia, mas já um tanto graciosa ela retornava. Sol a pino permitia que meus pés se encostassem aos seus fazendo o tempo se inquietar. De repente, já era outra noite e Graça voltava a ser estrela do mar. Nossos joelhos se encaixavam, depois as coxas, os quadris, barrigas, peitos e mais uma vez estávamos moldados, encaixados eu e ela num só corpo. Graça fazendo desaparecer minhas impaciências dentro de suas entranhas viciantes e ocupando os espaços vazios da minha boca. Durou o tempo que tinha que durar, nem eu nem ela percebemos quando as noites começaram a ser do tamanho que uma noite é, sem encurtar e sem esticar, mas foi de certa forma engraçado eu perceber que o sol se esquecera de parar no meio do céu... Acabara a graça.

 
 

fale com o autor