INVERNO NO FLAMENGO
Olga de Mello
 
 

Abriu a caixa de fósforos e puxou um palito, sem olhar. Já usado. Suspirou. Conviver com aquela mulher era aceitar os palitos queimados guardados dentro das caixas de fósforos. Devia criar um novo hábito: abrir a caixinha, olhar e pinçar um fósforo ainda virgem. Seria mais fácil do que se irritar toda a vez que precisava acender o aquecedor.

No começo, ria quando encontrava os fósforos queimados dentro da caixinha. Mas este começo ficara muito distante, junto com o enlevo que a voz dela lhe provocava. A casa atulhada de panos, de enfeites. A ele cabia apenas aproveitar, sentir o perfume dela invadindo seu armário, os cabelos dela se emaranhando em seu peito, os vidros de perfume dela nos armários, bolas de madeira e sachês distribuídos por todos os cantos escuros, que deveriam ter cheiro apenas de madeira, de livros, de tintas, de matérias duras, não voláteis, nunca abstratas.

Quando ela saia do banheiro, as paredes estavam suadas, transpirando o vapor, recendendo a perfume de sabonete, de xampu, de bolinhas amarelas, laranjas ou douradas que ela jogava na banheira para aqueles demorados banhos dos quais já participara, em tempos de corpos rijos, beijos intensos, imensos, gargalhadas altas, ninguém iria ouvir e daí se ouvissem? Às vezes acendiam velas em volta da banheira nas noites mais frias, mesmo com o risco de se queimarem com as chamas, o que acontecera duas ou três vezes, eram desastrados. Na banheira se refrescavam nas noites quentes do Flamengo, noites sem vento algum, noites em que as plantas murchavam, em que não havia som. Era no meio do banho que chegava o temporal e tinham que correr molhados pela casa para fechar as janelas às gargalhadas.

Com o correr do tempo, ela se tornara servil. Primeiro aos filhos, que se apossaram da banheira, da cama, de cada espaço que deveriam ter preservado. Os bebês eram tão carentes, tão manhosos, se acalmavam na água, um não podia sequer ouvir o barulho da ducha do chuveiro que tirava as roupas e se apresentava no boxe, pulando como um animalzinho, feliz com a possibilidade de se refrescar. Era difícil convencê-los a permanecer em suas camas nas noites de verão. Queriam o frescor do ar condicionado que só estava instalado no quarto do casal. Nunca sentiu saudades do tempo em que precisavam fazê-los adormecer, aqueles seres minúsculos e insones, sempre dispostos a brincar até a exaustão absoluta, disputando a atenção dos pais.

Preparar os banhos de banheira, função que dividiam antes das crianças, passou a ser atribuição unicamente dela, que, vez por outra, o convocava a entrar na água, quando os pequenos estavam fora, à tarde, em casa de amigos ou com os avós. Parecia que ela o recompensava por cuidarem dos filhos lado-a-lado. Depois, o cansaço deu vez à preocupação, eram bons garotos, mas havia drogas, más companhias, moças prontas a darem o golpe da barriga. A casa se esvaziou rapidamente, os meninos saindo, era hora de retomarem o espaço usurpado por tanto tempo. Ela se aposentou e passou a fazer aulas de cerâmica, pintura em porcelana, ponto-de-cruz, tricô, tudo que mexesse com as mãos e criasse pequenos troféus para justificar sua utilidade.

A banheira resistiu até o neto mais moço ficar grande demais para querer utilizá-la. Uma reforma botou abaixo o banheiro e um box largo, com corrimões foi montado apesar de seus protestos. Ela não o ouviria de qualquer maneira, perdera parte da audição e insistiu em que tornassem a casa segura para a velhice que se aproximava. Nela, a velhice se instalara, os cabelos não aceitavam sequer as tinturas que costumavam colori-los, o corpo se tornara flácido, a pele ressecada. Ele percebera os próprios fios grisalhos no dia em que fora obrigado a se aposentar. Pretendia aproveitar o tempo ocioso para conhecer o mundo, porém descobriu que ela tinha planos de acompanhá-lo, o que iria encarecer as viagens, em primeiro lugar. Não, agora teria uma vida de tédio absoluto, com visitas esporádicas dos filhos e netos, caminhadas no Aterro, sempre com a mulher, com aquela velha ao lado.

Foi à cozinha procurar fósforos. O rádio da empregada tocava um samba medíocre.

- Ih, doutor, não tem fósforo, não. Esqueci de comprar hoje cedo, mas se o senhor quiser, vou lá no botequim comprar uma caixa.

- Não precisa.

Saiu da cozinha furibundo.

- Ô, meu amor, por que essa carinha amarrada?

- Acabaram os fósforos, queria tomar banho.

- Outro, meu velho?

- Outro?

- Você tomou dois banhos hoje. Não precisa mais, não.

- Esqueci.

- Vem ver o jornal pra esperar o jantar.

Se ainda houvesse uma banheira, se ela não tivesse a mania de guardar fósforos queimados dentro da caixinha ele não ficaria confuso. Sentou-se na poltrona, deu a mão a ela. O jantar ia demorar.

 
 

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