NESTA DATA QUERIDA
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Luís Valise
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Tenho a cabeça cheia de zumbidos, dores e uísque. O travesseiro do hotel barato cheira a desinfetante. Passo a mão sobre o criado-mudo em busca do maço de cigarros, e sinto o toque frio do aço niquelado do revólver. Acendo um cigarro, e tusso quando as patinhas do câncer arranham minha garganta. Que noite! Deitei de roupa e tudo, e será difícil explicar à polícia porque estou assim: de ressaca, roupa amarrotada, deitado na cama daquele hotel de quarta, e, ainda por cima, com aquela mulher ao lado. Ninguém acreditava quando eu dizia que completava trinta e seis anos. Diziam "Incrível!", "Não acredito!", "Não parece!", coisas assim. De fato eu não mostrava essa idade, tinha a aparência de uns quarenta e cinco. Até hoje não sei se por herança genética, já que não conheci meu pai, e minha mãe um dia levou-me à escola e nunca mais voltou. Eu tinha três anos, e por mais que me esforce não consigo lembrar seu rosto. Fui entregue a uma associação que cuidava de crianças abandonadas, e imagino que lá tivesse comida e alguns remédios, senão não estaria aqui. De outras coisas não lembro, ou não quero lembrar. A mulher que está ao meu lado é bonita. Conheci-a na boate onde fui comemorar meu aniversário. O bom de não se ter amigos é que você pode fazer o que quiser no dia do seu aniversário. Ir ao cinema, ou não. Jantar, ou não. Beber, ou não. Dormir com a mulher que você quiser, ou não. Eu quis dormir com essa. Mas antes paguei algumas cervejas aos colegas de escritório, se não iriam me encher o saco o resto do ano. Costume besta, ter que pagar cerveja quando se faz aniversário. Como se alguém se importasse com isso. Só querem mesmo é beber de graça. E ter a chance de comer alguma colega de trabalho que beba um pouco a mais. Depois eu fui pra casa, tomei banho, e fiquei vendo televisão até sentir vontade de comemorar. Me vesti, terno e gravata, peguei minha arma, conferi a munição nos buracos redondinhos do tambor, ajeitei-a na cintura, oculta sob o paletó, e saí. A noite estava calma. Todos os anos, as noites são calmas, quando é meu aniversário. Trinta e seis. Há oito comemoro sempre igual: vou a uma boate, escolho uma linda mulher e passo a noite com ela. Eu mereço. Este ano resolvi voltar à mesma boate de dois anos atrás, Dancing in the Dark. Um bom nome. Uma raridade hoje em dia, já não se fazem boates assim, pra dançar como antigamente, devagar, rosto no rosto. Bem escurinho. Tanto que, pra escolher a mulher, acendo um cigarro durante a conversa, assim posso ver seu rosto à luz da chama do isqueiro. Eu gosto de mulheres bonitas. Às vezes gostaria de lembrar do rosto da minha mãe. Essa que está ao meu lado tem o cabelo claro e cacheado, rosto jovem, olhos grandes e boca bem desenhada. À luz do isqueiro ficou irresistível, muito sensual mesmo. Jacqueline. Gostei do nome, classudo. Conversamos, ela não falava errado, durante o dia ninguém diria que era uma puta. Se bem que hoje em dia muitas não ligam parecerem putas, desde saiam com os caras certos. Quando eu disse que fazia trinta e seis anos ela não mostrou espanto. Talvez por estar escuro. Em compensação ela disse que, como presente, faria o que eu pedisse. Eu pedi para dançar. Era do tipo falsa magra, sabe como é? Ao abraça-la senti um corpo macio, roliço, que me acompanhava suavemente, como se dançássemos juntos há anos. Gostei mesmo dela. Disse que queria passar a noite com ela, que respondeu não fazer isso, passar a noite não, não gostava de dormir com homem, eu insisti, lembrei meu aniversário e sua promessa. Acabou concordando. Custaria mais. Eu pago, respondi. Sempre pagava. Não é qualquer cliente que pede champanhe, ainda mais importado. Jacqueline estava contente. Brindamos, e ela deixou que eu beijasse seus lábios. Durante a conversa foi ficando mais aberta, me contando de onde viera, e quase me diz seu nome verdadeiro, mas eu não deixei. Prefiro Jacqueline. Deixei o resto do champanhe pra ela e mudei pra uísque. Pega mais, me deixa mais ligado. Dançamos mais, muitas músicas. Ela estava amorosa. Foi quando pedi a conta, e paguei em dinheiro vivo. Ela viu e me disse pra tomar cuidado: "Cuidado com o dinheiro, querido." Eu já era "Querido". Eu gosto de passar a noite com mulher apaixonada, ainda que por algumas horas. Ela estava apaixonada, por algumas horas. Parei o carro meio distante do hotel. Viemos caminhando abraçados, entre beijos e carícias. Ela não reclamou do hotel. Estava feliz. Entramos no quarto, ela já foi tirando a roupa, ficou peladinha. Tentou afrouxar o nó da minha gravata, não deixei. "Deita." Ela deitou. Apaguei a luz do quarto, acendi a do banheiro, deixei a porta entreaberta. Na penumbra, seu corpo sobre o lençol era um convite. Ela notou minha ereção sob a calça. "Vem", ela disse. Eu peguei meu travesseiro e fui. Parei ao seu lado. Ela começou a desabotoar minha braguilha. Tirei meu revólver da cinta. Coloquei o travesseiro dobrado sobre ele. Ela não viu. O disparo foi abafado. Entre os seios. Tive cuidado em não machuca-los. Dei a volta na cama, deitei-me ao lado de Jacqueline, cantei baixinho "Parabéns pra você". Levanto-me da cama, jogo o cigarro no vaso, dou descarga. Pego o maço de cigarros e o revólver sobre o criado-mudo. Tenho que sair antes que amanheça. Amanhã, a notícia da morte de Jacqueline sairá no jornal. Saberei seu nome verdadeiro. Olho seu rosto pela última vez. Passo pela portaria deserta do hotel vagabundo. Ando até o carro. Dirijo com cuidado. Afinal, tenho a cabeça cheia de zumbidos, dores e uísque, e não quero dar explicações à polícia. |