CÃES QUE SENTAM, NO DIVÃ
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Eduardo Sales
(Duninja) |
Nasci e parti. Parti de mamãe. Mas na realidade, não me recordo dela e nem sinto tanta vontade assim. Hoje, com quatro anos, só conheço Raquel, Suzano, Pérsia, papai Sodré e a mulher que me cria, mamãe Coda. É inexplicável o sentimento que me vem quando está todo mundo junto em casa. Raquel é a pequena, de 7 anos. Usa uns óculos de armação rubra, cor de sangue fresco. Menina sapeca. A danada tira tudo do lugar e sempre fala um tom acima das outras pessoas. Às vezes ela me irrita, e eu sinto vontade de mordê-la. Porém, quando pauso na sua frente, a ponto de abocanhar a mãozinha, ela pausa os gritos com mamãe e faz voz meiga para mim. Suzano também é uma criança tratada, sapeca, e mais, inteligente. No entanto, como toda criança de 10 anos, também faz coisas nojentas. Por ser tratado, nunca pensei que poderia colocar tantas vezes o dedo no nariz desse jeito. A cada quinze minutos o moleque põe o mindinho no buraquinho. Pérsia o chama de "preparador de argamassa". Eu não entendo. Essa menina! Uma adolescente morena, cor de jambo, olhos um pouco puxados, corpo quente, diferente de qualquer anjo renascentista. Seu olhar é, para todo o sempre, questionador. Todo dia, de segunda à sexta, a garota deixa as letras dos livros refletirem-se em seus olhos. E isso era sagrado. Obcecada era pelos estudos das línguas, entre outras coisas. Seu Sodré, uma vez, assustou-se comigo quando estava conversando sozinho. Era o costume de papai. O engraçado era que, quando me via, parava de falar, esperava alguns segundos e, mesmo com a minha presença, continuava aquela divertida cena em preto e branco. Não quero que pensem que sou xereta por reparar nesses detalhes. Até hoje não compreendo a atitude de mamãe, Dona Coda. Por que usar as meias ao avesso? Por que? Será alguma promessa? Isso é estranhíssimo. E ela parece saber que todos nós reparamos nessa situação e parece também não se importar. Faz questão de ouvir, todos os domingos, ao fazer o almoço, músicas do rei. Minha família é bela. Gosto muito de cheirá-los. Somente uma coisa me incomoda. Tudo que faço é normal. Quer dizer, os outros cachorros têm praticamente as mesmas manias que eu.Todos se coçam , cheiram tudo o que vêem, latem...Talvez o que possa me diferenciar deles possa ser a minha família. Eu a analiso, vivo a ela e digo que mania é esta: "Meu mundo é vocês." E eles me dizem: "Senta!" |