COLORINDO A VIDA
Eduardo Prearo
 

A amiga de Mário, que se diz pobre, não lhe deu mais brindes depois do irrequieto outono. A amiga de Mário, que outrora o levava a baladas agradáveis, é mulher de satélite natural. Mulher é sentimentos, boca livre malabarismos, mariposas. Mário não compreende as amizades paulistanas, jamais as entendeu; elas o limitam de alguma forma. Mas aceito as normas da amizade, evitará conflitos talvez desnecessários.

Mário está deitado, a luz pisca vez ou outra, o passado emerge bruscamente. Foi em um dia fresco, ventoso, que Mário procurou uma cartomante. Entrou em uma casa antiga, sentou-se em cadeira gélida, titubeava. A mulher foi logo lhe perguntando sobre as namoradas. Ele olhou para o teto de madeira podre, pássaros pipilavam lá fora. Era-lhe deveras complicado falar sobre a predominância do azul na paisagem que era para ser rosicler. De qualquer forma, nos tempos modernos, é-se quase sempre um item paisagístico, independente do que se seja. A taróloga, que após algum tempo pareceu entender tudo, disse-lhe um sinto muito, disse-lhe que a tal relação não deveria terminar. Viva a dominação machista!, completou ela com o olhar. Era assim mesmo: homem que cai nesse tipo de poço não sai mais. Mário imerge desse passado, soam duas horas, é hora de repousar, amanhã será outro dia.

A mania de Mário é morder o lábio superior. Faz isso o tempo todo e por vezes a região sangra, um nojo. Hoje havia bastantes e-mails de holandeses na caixa da internet. Pessoas-demônio murmuravam nesta manhã; disseram algo como albergue quando o viram, e ele não crê que elas não sejam do bem. Ou será que disseram mau ergue? Não, não seria possível. Deus faça jus disso. Mário sempre acha que toma decisões as mais erradas, mormente aos domingos, dia regido pelo Sol. O sol dele não tem aspectos, sua vida não tem aspectos. Ele acha que terá um encontro com Helena em uma estação de trem, no meio do vapor de delfos, e ela lhe dirá como agir com cautela. Estranho isso, como agir com cautela. A amiga de Mário, a das baladas, talvez ganhe grana para irem à Paris dos cemitérios. Ele precisa de grana, precisa de trabalho melhor remunerado. Haviam-lhe prometido trabalho; sim, algumas pessoas de um sonho onde gizes de diversas cores desenhavam sozinhos figuras abstratas. Seria preciso colorir a vida, a tão frágil vida...

 

 

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